Você viajou para uma região que produz vinhos e não planejou uma visita a qualquer vinícola. Para muitos, isso pouco importa. Para outros, conhecer um produtor pode se tornar um passeio agradável e inesperado. Mas para nós isso é indispensável. Raro viajar para um canto que tenha vinho sem tentar marcar uma passadinha técnica para conhecermos algo. Mas nem sempre isso é possível. E em 2013 chegamos a Saint Émilion, região de Bordeaux na França, “desprevenidos”. Um dos lugares mais especiais em matéria de vinho e nada de agendas. Por lá, tudo respira o charme da gastronomia, da bebida que tanto apreciamos e do romantismo. Não vou descrever amiúde a cidade, mas digo que foi um dos locais mais especiais que estive em toda a minha vida. O problema é que em meio a tantas definições deixamos de lado o empenho na busca por uma visita agendada diretamente do Brasil. Tristeza!

Saint Émilion
Foto: Saint Émilion

Mas, quis o destino que algumas ocorrências e a estrutura da cidade ajudassem. Na chegada descobrimos que estávamos hospedados num pequeno prédio, marcado via Booking, pertencente a Jean-Luc Thunevin. Três apartamentos e uma loja de vinhos na pequena garagem, de portas abertas para a rua. É ali que estava Carlos, funcionário da famosa “vinícola de garagem”. Além de toda a sua simpatia e hospitalidade, falava um português claro e contou que por vezes está no Brasil negociando o vinho. Sorte nossa que estava ali.

Assim, o tratamento foi de primeira, apesar de a impressão inicial não ter sido das melhores. O apartamento era genial, charmoso, gostoso, mas atrás do prédio existe a tal garagem onde os vinhos nasceram e ficaram famosos. E lá, como cortesia da hospedaria, é possível estacionar o carro. Foi o que fiz, mas afobado por conta da vinda de um veículo na mão contrária da estreita rua histórica da cidade de menos de dois mil habitantes, entendi que dava pra atropelar as correntes do estacionamento. Foi aí que conheci a ira dos dois ocupantes do outro carro. Eram os donos do local. Bravos, bradando absurdos e reclamando do meu erro num francês nervoso e incompreensível. Depois de constatar que não avariei nada e pedir perdão em quatro línguas (pardon, sorry, perdón, desculpa!), também perdi a paciência e fui grosseiro. Aí eles foram embora. Bravos. Quando contei o episódio a Carlos e vi uma foto de Thunevin na capa da revista de vinhos mais famosa do mundo percebi que tinha arrumado encrenca com o premiado “Rei dos Vinhos de Garagem”. Paciência. Nada mais ocorreu. Ou melhor: fomos do conflito ao paraíso.

Foto: A garagem

 

 

 

 

 

 

Foto: a garagem

O primeiro passo foi dado pela própria hospedaria. “Ficar lá” dava direito a uma degustação de parte expressiva do que estava estocado na loja-garagem. E Carlos fez um trabalho magistral: provamos ao menos dez rótulos, com ênfase em maravilhosos vinhos de Pomerol, a cidade vizinha, a mais perfeita expressão do vinho francês em minha modesta opinião de parco conhecedor desse universo. O destaque, dentre outras compras, nós trouxemos para casa: “Le Clos du Beau-Père”, uma homenagem do brigão da garagem ao seu sogro. E ele deve gostar muito do pai de sua mulher, pois o vinho é genial!

Foto: Escritório de Turismo
Foto: Escritório de Turismo

O segundo passo foi dado no escritório de turismo da cidade. Ali o esquema para os amantes do vinho era fantástico em 2013, e espero que continue assim. As diversas vinícolas da cidade têm um esquema de revezamento para receberem turistas, aliviando suas agendas, amenizando surpresas e confortando a curiosidade dos milhares de viajantes diários. Assim, pela manhã, compareça ao local e pergunte: “quais as vinícolas do dia”? E tudo se resolverá. Algumas cobram, outras recebem gratuitamente, algumas agendam e outras pedem pra passar. Visitamos as duas de uma ensolarada manhã de junho: a primeira de maneira bem informal, conduzidos por uma mexicana simpaticíssima e gratuitamente, a Château Cardinal-Villemaurine – hoje eles já cobram. A outra foi a elegante Château Soutard, numa visita bem turística, com crianças correndo, pagamento antecipado, turistas fazendo perguntas estranhas e alguns resquícios de hábitos grosseiros. A casa era deslumbrante, mas o passeio não deixará saudade alguma. Saudades, sim, temos de Saint Émilion e suas ruas estreitas, restaurantes geniais, ladeiras íngremes, vinhos espetaculares a preços corretos e um carinho todo especial com os turistas. Isso sem contar a história, o banho de cultura. Mas o assunto aqui é outro, e sempre o mesmo: os vinhos.

Château Soutard
Château Soutard (esq.) e Château Cardinal-Villemaurine (dir.)

Château Cardinal-Villemaurine