Quando a Ka passou uma boa temporada em um restaurante cujo objetivo maior eram os vinhos, ela começou a trazer para casa algo mágico: cozinhar para o vinho é um dom muito especial. E ele é aprimorado quando a cozinheira começa a conhecer os lugares de onde esses vinhos vêm. O que é plantado? O que se cultiva? O que transmite sabor para as videiras? O que compõe o terreno próximo? Quando essas perguntas são bem respondidas o único resultado possível é uma satisfação enogastronômica equivalente ao que popularmente chamamos, de forma pouco elegante, de “orgasmo bucal”.

Pois bem: a história de hoje é uma dessas passagens em que nos sentamos à mesa, comemos, bebemos e quando engolimos a comida e a sucedemos com um gole de vinho ficamos em silêncio tentando entender o que encontramos. Vamos lá, pois esse prazer, pra além do encontro perfeito, também nos remete a passagens de nossa história. E esse é o ponto máximo da gastronomia. Lembra do filme “Ratatoille” quando o crítico coloca a comida na boca e lembra da infância? Pois é.

Em 2009 fomos pela primeira vez para a Europa. A emoção de pisar no Velho Continente é inigualável para quem ama viajar e se delicia com vinho e comida. Na Espanha alugamos um carro no aeroporto de Madrid e rumamos diretamente para Burgos. De lá exploramos o que foi possível em matéria de vinho. Com a Ka voltei uma vez para a região, e perto dali estive sozinho em 2018. Que lugares geniais.

Nessa viagem de 2009 fomos recebidos pelos proprietários da Hermanos Pérez Pascuas em grande estilo. Família de gente muito acolhedora. Durante a degustação de um crianza, um jovem membro da família nos perguntou: o que identificam nesse vinho? Faz anos que percebemos muitas coisas legais, mas há algo que não nos ocorre e que está aí – afirmou. A Ka tem uma capacidade de perceber aromas e sabores que transcende o normal. Pois bem: a primeira coisa que disse foram as “frutas vermelhas”. Isso era um tanto óbvio. O rapaz fez aquela cara de quem sabia. Mas bastaram alguns poucos minutos e goles para a Ka dizer que tratava-se de uma especiaria. E mandou: “aqui eu sinto um sabor discreto e muito elegante de pimenta branca”. Senti que a Espanha havia marcado um gol na final da Copa do Mundo. Foi uma festa. Uma alegria real. Nossos convidados ficaram encantados com a percepção e chegaram a dizer que colocariam isso em descritivos técnicos da bebida. Se isso ocorreu já são outros 500.

Pois bem: as viagens seguintes pela Espanha nos mostraram que por lá não faltam setas. Esqueça do pisca-pisca dos carros e das flechas. Seta em espanhol é o que chamamos aqui de champignon, ou cogumelos. A oferta é tão grande que ano passado um amigo se assustou quando entrei num supermercado de Salamanca, comprei uma caixa de cogumelos, abri e fui os comendo às dentadas sem lavar. “Dantas! Isso faz mal. Cogumelo não é maçã!”. Longe disso: maçã é bom, cogumelo é divino…

Copiada

Hoje em casa abrimos um Matarromera crianza 2014 que comprei no aeroporto de Madrid por menos de 20 euros – aqui no Brasil estimo que deva custar algo pouco acima de R$ 200. E a Ka apresentou um risoto delicioso que trazia cogumelos (setas) com pimenta branca – veja a foto acima. Pronto! Nossa história veio à cabeça. Dez anos depois de nossa primeira viagem unimos um delicioso vinho de uma região muito especial aos prazeres da harmonização. Ribera del Duero é uma região genial no mundo dos vinhos. Pra quem gosta de carvalho intenso e Tempranillo utilizada da forma correta é o que existe de melhor. Pois bem. Saúde! Um minuto de silêncio para essa sensação única capaz de unir o prazer de comer, beber e lembrar.

MAtarromera

Fonte: Vinissimus