Liguei para um amigo e ele me disse que conseguiria agendar para mim duas visitas a vinícolas na Espanha em abril de 2009. Nunca havíamos pisado do outro lado do oceano Atlântico e estávamos ansiosos. Quando recebi o e-mail de confirmação liguei para a Ka e perguntei: “essa Veja Sicilia é legal”? Ela desdenhou, desacreditou que a agenda estivesse confirmada e passou a me contar um pouco sobre o que é o Único – o principal vinho da casa.

Santa inocência! Como pude ser tão mirim? Estamos falando de uma das dez melhores bodegas do mundo, com vinhos extremamente premiados. Um verdadeiro espetáculo. O Único é uma obra sublime, cuidadosamente forjada num dos melhores locais de Ribera del Duero – o que viria a se tornar a minha região predileta para vinhos tintos.

Após alguns dias em Portugal, um voo de Lisboa para Madrid e um carro alugado já no aeroporto nos levou para a charmosa e memorável Burgos, e sua exuberante catedral. Uma cidade que merece a visita. Na manhã do dia seguinte à nossa chegada a agenda especial nos esperava. Estávamos distantes mais de 100 quilômetros da bodega, e o encontro estava marcado para 11h00. Nosso pacote no hotel não tinha café da manhã e corremos de estômago vazio. Essa era a primeira visita agendada pela importadora que meu amigo trabalha. O que nos aguardava?

A Vega Sicilia não recebe visitantes em passeios turísticos. Apenas pessoas indicadas por seus parceiros comerciais pelo mundo. Chegamos ao portão da bodega e o esquema é tão rigoroso que tivemos que mostrar os passaportes e esperar alguns minutos no portão fechado, ao lado de uma guarita bem protegida. Sob autorização, entramos e fomos recebidos por uma senhora extremamente elegante chamada Yolanda. Para nos deixar à vontade, contou que morara em São Paulo, na zona leste, e nos conduziu por histórias magníficas em um português tranquilo e aconchegante. Genial! De uma simpatia única. Muito bacana.

Tudo na vinícola é feito de forma extremamente atenta. Àquela ocasião era impossível comprar vinhos na casa, sendo necessário fazer parte de uma espécie de clube de investidores. Outro fato que nos chamou a atenção é o controle rigoroso de todas as etapas da produção. Nossa anfitriã nos contou, por exemplo, que até mesmo as barricas de carvalho são feitas na casa. O carvalho é adquirido, tratado, e transformado nos tradicionais barris. Tudo para garantir que a tosta necessária à construção dos recipientes sigam sob o rigoroso controle capaz de ofertar previsibilidade ao que será transmitido para o vinho.

Vega

A visita terminou em uma pequena sala onde nós três fomos apresentados a cinco garrafas de vinho: Mandolás, Pintia, Alion, Valbuena e Único. Na mesa de centro à frente de um pequeno sofá quinze taças. Yolanda pediu licença para atender ao telefone e nos deixou por um instante. Nunca havíamos participado desse tipo de visita exclusiva. E a Ka fez a pergunta inevitável: “o que nosso amigo falou sobre cobrança por parte da vinícola?”. E a resposta: “que qualquer cobrança feita pela casa visitada é de exclusiva responsabilidade dos visitantes”. Pra terminar: “então está bem. Só para lhe avisar que deve ter uns 500 euros de vinha na mesa”. Confesso que perdi um pouco da motivação, mas são coisas da vida.

Yolanda abriu cada uma das garrafas e nos serviu uma boa taça. Foi quando começou a falar das bebidas. Contou que o Oremus Mandolás era um projeto mais recente, um branco produzido na Hungria a partir da uva Furmint, que dá origem aos fabulosos vinhos de sobremesa de Tokaji. A prova nos apresentou algo absolutamente especial. Um vinho refrescante e intenso. Esse se tornou nosso branco para momentos especiais, e recentemente tomamos uma garrafa em casa, para recebermos a oficialização de um convite para sermos padrinhos de um casamento que muito nos orgulha. Continua sublime.

Em seguida falou das uvas colhidas em Toro, uma região próxima dali, que dava origem ao Pintia. Um tinto premiado, feito com nossa predileta Tempranillo, a exemplo dos seguintes, e extremamente agradável. Em 2013, na Espanha, o reencontraríamos na casa de um amigo querido que nos recebeu com esta – entre outras garrafas – e um jantar muito simpático. O vinho já estava aberto, e ainda assim guardava características especiais.

O rótulo seguinte era um Alión. Uma explosão maravilhosa feita a partir do que existe de mais especial em Ribera del Duero. Encontramo-nos com ele algumas vezes depois dessa primeira experiência. Um casal de amigas passou a abrir em alguns aniversários da Ka uma garrafa. Foi assim em 2011, 2012, 2013 e 2016, com as safras 2006 (duas garrafas), 2003 e 2011. Difícil dizer o que estava mais perfeito.

O penúltimo foi o lendário Valbuena. Néctar genial para quem ama os vinhos que passam por barricas de carvalho. Sei que é algo que alguns críticos começaram a evitar, mas o Valbuena é irresistível. Descansa, de acordo com a bodega, cinco anos em barricas novas. Vinhos muito bacanas, por vezes, adquirem personalidade marcante com um ano de barrica. Imagine cinco, sob a responsabilidade de uma casa extremamente perfeccionista. O resultado é uma bebida de guarda, que reencontrei em Lisboa. Era 2012, comprei uma garrafa numa loja especializada por 90 euros, e ela está descansando em casa até 2020, quando completará 15 anos, e eu 45. Esse encontro está especialmente marcado.

Para terminar: a lenda. O vinho considerado por críticos como um dos cinco, três, ou o melhor vinho do mundo. Isso mesmo: Yolanda nos apresentou ao Único. E ele é, e foi em nossas vidas: Único. Estamos falando de um vinho que costuma custar mais de 300 euros nas lojas da Europa, e cerca de três mil reais no Brasil. Não tenho condições econômicas e psicológicas pra aquisições dessa natureza. Assim: o evento aqui foi único de verdade. Um gole, a descrição acurada de nossa anfitriã, outro gole. E nada mais.

Ao término da visita, que durou mais de duas horas entre risadas e ótimas histórias, Yolanda simplesmente se despediu. Receberia um casal indicado pelos reis da Suécia. E nós, simples mortais, seguimos para o café mais próximo. Recuperamos o fôlego, comemos algo e lembramos a história até hoje. Que em 2020 venha o Valbuena! E que não seja o único até lá!

Foto: Talk a vino
Foto: Talk a vino