Pense num jogo de videogame onde você avança de fase e vai se sentindo extremamente seguro e capaz de vencer grandes desafios. Agora pense que para além de evoluir na brincadeira, no menu inicial você escolheu jogar como um profissional. Nada é mais difícil, em alguns jogos, do que escolher a opção profissional e avançar pelas fases. No universo dos vinhos a cidade francesa de Arbois é o jogo dos profissionais em fase avançada. Estamos especificamente no Jura, que tem vinhos produzidos sob métodos singulares, garrafas em formatos próprios e uvas autóctones. Pois é: passamos de fase em módulo profissional. E para uma primeira partida entendo que fomos bem felizes, sobretudo diante de paisagens deslumbrantes e de um povo amável.

Talvez o Jura seja pouco conhecido por uma série de razões. A primeira pode ser econômica: os vinhos aqui são bem caros, sobretudo os brancos que envelhecem anos no carvalho. A segunda pode estar associada às preferências: os vinhos aqui são bem diferentes e muitos não os admiram – ou não os entendem. A terceira pode ser geográfica: fica atrás da Borgonha, pouco acima da Provence. Em matéria de vinho: tem como competir? Fica perto da Suíça, não muito distante dos Alpes e suas cidades são bem pequeninas – Arbois tem menos de quatro mil habitante. Pois é: pequeninas e geniais. É de lá, por exemplo, que vem o queijo Comté, com mais de mil anos de tradição e uma casa destinada a ele em Poligny, onde os produtores recebem os visitantes para um tour guiado e uma degustação. A escolha pelos vinhos, no entanto, nos tirou dessa boa aventura.

Entre várias opções de pequenas localidades escolhemos nos hospedar em Arbois, considerada a capital do vinho do Jura. Tenho para mim que acertamos em cheio, pois Poligny é maior, menos charmosa e mais industrializada, enquanto Château-Chalom, capital do Vin Jaune (o vinho amarelo das garrafas diferentes do Jura) é pequena demais. Pois bem: numa região em que carro é algo essencial, Arbois é rodeada por estradas arborizadas e deslumbrantes. Mas é no minúsculo centro que estão diversos restaurantes – incluindo um duas estrelas Michellin – e as lojas de vários dos principais produtores. Isso mesmo: você tropeça em vinhos pela cidade, já nos alertava uma família francesa com quem assistimos à derrota do Brasil para a Bélgica num bar em Lyon. Assim, rapidamente, contei mais de dez dessas lojas, sem considerar as propriedades que ao longo das estreitas rodovias colocam placas convidando para provas, visitas, compras e degustações. Trata-se de região simpática, que muitos entendedores de outros locais afirmam não ter sido completamente assimilada. Aqui se renova a sensação de fase avançada no jogo dos vinhos.

Entramos em três casas em nossa curta passagem de duas noites. A primeira se denominava um bistrot e bar de vinhos, atrelado a uma produtora chamada Tournelle. Era sábado à noite e a praça fervia por conta de um festival de bandas – a França no verão esbanja alegria e arte nas ruas. Trânsito fechado, ao lado do hotel, não tinha como não participar – e o show final, de soul, foi muito gostoso. O clima era fantástico: pessoas conhecidas nas ruas trocando sorrisos e brincadeiras, e poucos turistas como nós. Uma festa local, com sofás no passeio, mesas servindo pequenos pratos e alguns estabelecimentos abertos. Foi assim que fomos para dentro do nosso bistrô, grudado ao rio que corta a cidade. Ambiente delicioso, jovens descolados e pouco experientes servindo e cardápio de bar que em nada se relacionava com um restaurante. Pedimos um pouco de presunto e um prato de queijos que demoraram uma eternidade, além do vinho – da casa obviamente. Das duas uvas tintas que caracterizam o Jura uma eu já conhecia – a Trousseau, de um vinho trazido pela Ka de Nova Iorque, coincidentemente um Tournelle! Faltava a segunda: a Ploussard. E foi o que fiz: pedi um 100% Ploussard, o L’Uva. Nos veio algo muito leve e delicado em um balde de gelo. Mais suave que um pinot noir, zero de tanino, 12% de graduação alcoólica, turvo e natural, o vinho certamente desagradaria muita gente. Inicialmente nos pareceu difícil, mas bastou o bom contato com os queijos e tudo ficou fácil. Fácil demais.

Jura 1

A segunda experiência foi na nossa primeira manhã. Noite deliciosa de sono e queríamos entender o vinho do Jura. Para tanto, escolhemos a Henri Marie como casa maestra. No dia anterior almoçamos na praça em frente desse produtor e bebemos um corretíssimo Savagnin – a uva branca do Jura – de Frédéric Lornet que estava muito gostoso, especialmente envelhecido em carvalho sem se tornar enjoativo casou-se perfeitamente com os “tartares” de salmão e carne. Mas a história aqui é de Henri Marie, e lá fomos recebidos por uma senhora que num inglês claro e fácil nos ensinou o que era o vinho do Jura em uma degustação de três ou quatro pequenas doses de vinhos brancos – do Chardonnay que beberíamos num ótimo jantar horas depois, passando por um blend com Savagnin, por um 100% Savagnin, chegando ao vinho amarelo (vin jaune) e sua exótica garrafa “de farmácia antiga” envelhecido por SEIS ANOS e três meses em barricas, como mandam as regras locais (tem como ser barato?). Trata-se de algo tradicional ali, mas raro, com 620 ml. Genial!

Marie

Mas tinha mais, pois ainda nos seriam contadas as histórias de alguns aperitivos típicos da região e, principalmente, do Vin de Paille. Um licoroso de sobremesa, fortificado, feito a partir da combinação das melhores castas colhidas tardiamente, devidamente descansadas sobre esteiras de palha em ambiente arejado. Perguntei se era algo perto do Vin Santo italiano, e fui advertido que não – todos sempre dizem ter algo exclusivo. Ok! O importante é conhecer, aprender e sobretudo se surpreender com um vinho que harmoniza perfeitamente com chocolate negro, algo que será devidamente feito e seguindo o que nos disse nossa anfitriã.

Paille

Saímos da casa repletos de boas explicações e com três garrafas, mas ainda faltava o espumante local. Trata-se de um Crèmant feito predominantemente, e sob o método clássico, de Chardonnay e/ou Pinot Noir. A casa escolhida para a compra foi a Martim Faudot, em pequena loja onde fomos atendidos de forma muito simpática por um francês que nos ofereceu a prova dos espumantes brut blanc e rosê. Ficamos com o primeiro, e levamos uma garrafa para a piscina do charmosíssimo hotel Les Capucines, em tarde das mais agradáveis. Deixamos Arbois na manhã seguinte com a sensação de que faltava muito a ser explorado em matéria de vinho por ali. Que as garrafas compradas reforcem esse sentimento e nos tragam o gostinho dessa fase tão especial do jogo.

Cremant

Imagens extraídas das respectivas vinícolas