O IVDP é o Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto e tem por missão controlar a qualidade e a quantidade dos vinhos dessa parte abençoada do mundo – são da entidade aqueles lacres que selam as garrafas da bebida da região, e é da UNESCO o reconhecimento de que a paisagem vinhateira do local é patrimônio da humanidade. As origens do IVDP remontam ao ano de 1756, quando uma crise no mercado de vinho português faz despencar os preços e suscita fraudes, desconfianças, e à necessidade de criação de um conselho para regular as ações. Perceba que a instituição é anterior à Teoria das Vantagens Comparativas, idealizada por um dos pais das Ciências Econômicas, David Ricardo, na década de 10 do século XIX. Ele explicava, como exemplo, porque Portugal com seu vinho e a Inglaterra com seu tecido deveriam concentrar suas produções nesses itens e comercializá-los internacionalmente entre si.

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A Inglaterra historicamente se firmou como grande compradora de vinhos do Porto, e igual presença de empresas com nome inglês no mundo dos vinhos só observei em Jerez de La Frontera, na Espanha. Porto e Jerez são os mais expressivos ícones do que se costuma chamar de vinho fortificado, que se notabiliza, entre outras características, pela adição de aguardente vínica, pela grande admiração britânica e pelo longo envelhecimento – ou potencial para isso. Estive nas duas cidades, conheço os dois vinhos, e tenho extrema facilidade para os portugueses, e absoluta dificuldade para os espanhóis – nesse caso específico.

Em Portugal o IVDP define uma série de categorias especiais do Vinho do Porto, e entende que os Vintage são, para muitos, “a joia da coroa dos vinhos do Porto (…), o único Porto que amadurece em garrafa. Produzido a partir de uvas de um único ano e engarrafado dois a três anos após a vindima, evolui gradualmente durante 10 a 50 anos em garrafa”. Ao contrário do que chamamos tradicionalmente de Vinho do Porto, que podemos guardar alguns poucos meses depois de aberto, o Vintage exige consumo em até dois dias.

A produção de um Vintage ocorre apenas nas melhores safras, chamadas de “anos declarados” – pelas casas que os produzem e sabem, exatamente, o que fizeram. Entre 1900 e 2016, pouco mais de 40 safras foram assim consideradas por diferentes produtores. Algo realmente especial que custa muito aos vinicultores e ainda mais aos bolsos dos apreciadores. O ano declarado mais recente é 2011, que rende ótimos vinhos do Porto e no Douro. E uma das mais comemoradas safras da história é a de 1970, que segundo o IVDP tem “qualidade excepcional, com grande harmonia de fruto e taninos, assegurando grande longevidade. Quase todas as empresas declararam”. Pois bem, chega de teoria e história. Vamos à prática.

Na passagem de 2014 para 2015 eu e a Ka fomos para Lisboa, romper o ano na casa de um casal querido de primos, que nos recebeu com sua família e um jantar absolutamente divino. Juntou-se a nós mais um casal de amigos deles, que eu conhecia e admirara demais. Pois foram eles que entenderam que naquela noite algo deveria ser mais do que especial. Para além das mais de 10 garrafas abertas, a noite extremamente fria terminou com um Porto Ferreira Vintage 1970, a mais sublime obra de arte que coloquei na boca até hoje. A garrafa foi aberta horas antes, e o líquido passou por uma fina meia de seda alocada no bocal do decanter para servir de peneira para sedimentos. Diz a IVDP que “o encanto do Porto Vintage reside no facto de ser atractivo em praticamente todas as fases da sua vida em garrafa”, mas que principalmente “à medida que o vinho se aproxima da maturidade, a cor evolui para os tons âmbar ricos e a sua fruta adquire maior subtileza e complexidade e o seu depósito torna-se mais pesado”. Pois bem: um vinho cinco anos mais velho que eu, decantado e aguardado. Deliciamo-nos com ele em combinações perfeitas com queijos e alguns doces especialmente selecionados para a ocasião. Perfeito. Na noite seguinte ainda havia um fundo no decanter. E o vinho continuava estupendo.

Dias depois eu e a Ka chegamos a Lagos, cidade charmosa e encantadora do Algarve. No que parece ser a principal praça histórica do local encontramos uma loja de vinhos, e um senhor nos atendeu de forma muito atenta. Disse a ele que gostaria de comprar um vinho da região do Douro, safra 2011, produzido por Alves de Sousa – respeitado enólogo português. Indiquei que já tomara o aclamado Abandonado, e queria algo mais simples. Diante de minha descrição ouvi: “ao que parece o senhor entende de vinhos portugueses. Escolheu ótima região, bela safra e produtor especial. Leve o Gaivosa”. Levei e gostei muito. Também agradeci o elogio, fiquei orgulhoso e resolvi dizer: “quem conhece mesmo é meu amigo. No dia 31 nos ofertou um Porto Ferreira Vintage, 1970”.

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O silêncio se fez na loja daquele senhor, o proprietário do estabelecimento. Seu olhar se aprofundou, ele suspirou com sinceridade, os olhos ficaram vermelhos. Deu de costas, me chamou com um sinal delicado da mão, subiu numa pequena escada, afastou algumas garrafas de Portos mais comum na prateleira e puxou um Vintage de 1970. “Tenho esse aqui, que é muito inferior àquilo que o senhor tomou. E olha que esse aqui já é muito especial. Escute: você tomou o que existe de mais extraordinário na história do vinho português, não exija muito do vinho que vou lhe vender”. Claro que eu entendia minimamente o que estava levando para casa naquela noite, mas confesso que demorei muito para entender plenamente o que nossos amigos nos ofertaram no Réveillon. A perfeição.

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