O país de gente convicta, desprovida de percepção sobre o que é público e limitada intelectualmente não pode dar certo. Convicção bem sucedida tem limite, e o primeiro deles é a capacidade de aprender, pensar e raciocinar, e no setor público isso tem que respeitar os limites da lógica republicana. O que não falta aqui, no entanto, é gente limítrofe dotada de poder. Percebeu? Pode piorar: convicto, limitado, sem diferenciar os limites da vida privada e empoderado. Tragédia.

Nesse contexto vivemos dias sombrios. Um ministro qualquer resolve dizer que a universidade pública é uma balbúrdia, onde as pessoas fazem festas peladas. Oi? E ao invés de discutir valores relevantes, de tentar entender e debater o que ele mesmo chama de um “estado paralelo” onde a polícia não costuma entrar e as drogas tendem a chegar com certa facilidade, profere aberrações repletas de juízo de valor, generalidades e sem qualquer conhecimento da ampla realidade nacional. Ademais, mistura completamente assuntos distintos, e ao invés de dizer que temos um governo que prefere investir no desenvolvimento da educação infantil, em detrimento de financiar a pesquisa e o ensino superior público, junta TUDO no mesmo cesto e, para falar com limítrofes convictos, diz que sua fantasiada “zona universitária” justificaria cortes de orçamento que transformaram a universidade pública num verdadeiro caos nos últimos dias. Seu discurso raso vai colher o que existe de pior, mas paciência. Fato é que ontem eu conversava com uma colega dessas que brilha demais intelectualmente e a burocracia do MEC consome seu potencial em bobagens contra as quais, infelizmente, não tenho ouvido ministros falarem. Quem sabe um dia?

Pois bem: ela me contava que a BALBÚRDIA – fruto das fantasias de alguns asnos que devem assistir comédia americana e se sentir frustrados por nunca terem participado de uma festa intensa que independe de escolas – é legalmente impossível aos olhos das regras já existentes. Os editais das financiadoras brasileiras de pesquisa universitária, por exemplo, sequer permitem a compra de garrafas de vinho para um simples coquetel de lançamento de um livro ou de um revolucionário relatório de pesquisa. Nas universidades paulistas, sequer é permitida a entrada de álcool, obviamente e infelizmente vendido no paralelo ou consumido por seus magníficos membros às escondidas. O comitê de ética de uma renomada universidade paulista precisa aprovar em reunião de acadêmicos de seu mais alto conselho a entrada de cerveja para pesquisa em uma escola de engenharia dos alimentos. É muita estupidez junta e acumulada, a despeito de os coquetéis de premiações da CAPES serem regados a bons vinhos. Percebe? É tudo ilógico.

Para completar esse cenário maluco, aqueles que ocupam a “corte suprema” da justiça nacional, e por vezes trocam a lógica republicana por princípios monárquicos absolutistas, lançaram um edital em abril para o fornecimento de coquetéis, almoços, jantares, lanches, cafés da manhã e até mesmo “brunchs”. A compra de comidas e vinhos (dentre outras bebidas alcoólicas) escapa completamente a qualquer lógica, sobretudo diante dos salários assombrosos pagos aos ministros do STF, remunerados pelo teto do funcionalismo público nacional.

O Brasil não é um país para grandes festas com dinheiro público. Nada situado nos valores atuais justifica tal gasto. Isso mesmo: gasto! Dinheiro para vinho e lagosta não é papel do Estado. O Judiciário não precisa receber bem, em jantares e eventos, qualquer pessoa do universo com dinheiro do contribuinte. Isso é um esbulho. Isso é descartável, digno de esquecimento. Pois bem, não faltou briga na justiça, suspensão de edital e todo tipo de conflito entre os “nobres” e aqueles que parecem minimamente preocupados – sem deixar de destacar que todos eles fazem parte da elite pública que nada em privilégios corporativistas ilustrados por salários altos, carreiras atraentes, aposentadorias polpudas, recessos deliciosos, muito poder e estabilidade inabalável. No final, o edital (STF 27/2019) previsto em cerca de R$ 1,13 milhão foi concluído em pregão por menos de R$ 500 mil de acordo com o noticiário. No site do STF, até hoje, não existe o nome da empresa vencedora no link dos pregões, tampouco a proposta que venceu, com os vinhos escolhidos. A despeito disso, vamos à polêmica lista do STF, que a imprensa tratou de mostrar de forma bem limitada. Notícias davam conta de que o vinho comprado tinha que ser da uva Tannat, o que é uma meia verdade. Ao todo existem oito vinhos listados, confira (e não se assuste pela lista começar pelo item 1.1.2, deve ser alguma superstição não iniciar pelo 1.1.1):

1.1.2. Espumante brut, produzido pelo método champenoise e que tenha ganhado ao menos 4 (quatro) premiações internacionais. O espumante deve ter amadurecido, em contato com leveduras, por período mínimo de 12 meses. A safra ou vindima do espumante deve ser posterior a 2013.

1.1.3. Espumante extra brut, produzido pelo método champenoise, e que tenha ganhado ao menos 4 (quatro) premiações internacionais. O espumante deve ter amadurecido, em contato com leveduras, por período mínimo de 30 (trinta) meses. A safra ou vindima do espumante deve ser igual ou posterior a 2009.

1.1.4. Vinho tinto fino seco, de uva tipo Tannat ou assemblage contendo esse tipo de uva, de safra igual ou posterior a 2010 e que tenha ganhado pelo menos 4 (quatro) premiações internacionais. O vinho, em sua totalidade, deve ter sido envelhecido em barril de carvalho francês, americano ou ambos, de primeiro uso, por período mínimo de 12 (doze) meses.

1.1.5. Vinho tinto fino seco, de uva tipo Cabernet Sauvignon, de safra igual ou posterior a 2010 e que tenha ganhado pelo menos 4 (quatro) premiações internacionais. O vinho, em sua totalidade, deve ter sido maturado em barril de carvalho, de primeiro ou segundo uso, por período mínimo de 12 (doze) meses.

1.1.6. Vinho tinto fino seco, de uva tipo Merlot, de safra igual ou posterior a 2011 e que tenha ganhado pelo menos 4 (quatro) premiações internacionais. O vinho, em sua totalidade, deve ter sido envelhecido em barril de carvalho, de primeiro uso, por período mínimo de 8 (oito) meses.

1.1.7. Vinho branco fino seco não aromático, de uva tipo Chardonnay, de safra igual ou posterior a 2013 e que tenha ganhado pelo menos 4 (quatro) premiações internacionais. O vinho, em sua totalidade, deve ter sido envelhecido em barril de carvalho, de primeiro ou segundo uso, por período mínimo de 6 (seis) meses. A colheita das uvas para fabricação do vinho deve ter sido feita manualmente.

1.1.8. Vinho branco fino seco, de uva tipo Sauvignon Blanc, safra 2015 e que tenha ganhado pelo menos 4 (quatro) premiações internacionais. A colheita das uvas para fabricação do vinho deve ter sido feita manualmente.

 

Surpreende a TARA por prêmios, como se isso fosse sinal de qualidade. Por sinal: sempre que olhar uma garrafa repleta de medalhas de concursos mundiais desconfie. Chama a atenção também que a safra ou vindima dos espumantes seja exigida. Espumantes safrados costumam ser caros e informações desse tipo são raras nos rótulos por questões associadas à produção. Também incomoda que o termo champenoise seja utilizado, pois ele está sendo registrado em Champagne para uso exclusivo daqueles produtores franceses, ou seja, o correto aqui seria “método tradicional”.

Os três tintos são interessantes, e a Merlot, assim como a Cabernet Sauvignon SERIAM escolhas acertadas para uma suposta licitação, uma vez que são as duas uvas para vinhos finos mais plantadas do mundo de acordo com dados do Centro de Pesquisas Econômicas do Vinho da Universidade de Adelaide, na Austrália. Estranho, no entanto, que um precise de oito meses de carvalho e o outro de doze. A quem esse tipo de descrição beneficia? Ademais: e a Tannat? Casta polêmica, da qual gosto muito, trata-se da centésima variedade que mais ocupa espaço nos vinhedos do planeta (imagem desse texto). Isso só pode ser capricho de algum ministro, ou de quem escreveu o edital ou fez o pedido. Assombra imaginar, por exemplo, que existe um vinho brasileiro com as exatas características do edital. Assombra pensar que apenas o Uruguai tem essa uva como a casta que se destaca. O Rio Grande do Sul tem a utilizado bastante, mas a restrição do edital assombra.

Por fim, os brancos tratam de duas uvas bem conhecidas e disseminadas, mas o detalhe da colheita manual é questionável à luz do restante da descrição. Ademais, um Chardonnay fresco e sem carvalho poderia ser menos dispendioso e igualmente agradável. Em resumo, e que fique bem claro: não posso reclamar de quem toma vinho, obviamente. Mas definitivamente o Estado brasileiro trata diferente os seus. Um simples estudante universitário, adulto, é proibido de comprar cerveja numa universidade pública com seu dinheiro, enquanto um ministro do Supremo, que recebe o teto de recursos do funcionalismo público brasileiro pode jantar alimentando seu gosto pelas boas bebidas com o suor amargo – ou doce – do contribuinte. Claro que aqui o debate precisa fluir melhor, mas definitivamente eu sou contrário à compra de bebidas alcoólicas pelo estado brasileiro, sobretudo para regar a vaidade, o luxo, a corte e a monarquia judiciária nacional. Sou contrário a festas com recurso público. Pelo meu vício pago eu, e quem bebe vinho em festa de corte pública tem plenas condições de fazer o mesmo.

Tannat