Era dezembro e o sol marcava presença. Céu absurdamente azul, nada de nuvens, mas também nada de calor. Portugal, Lisboa naquele dezembro de 2009 estava linda. Procurávamos um lugar para virar o ano no nordeste. Tínhamos passado o Natal em família, em Natal, e seríamos padrinhos de um casamento no começo de janeiro. Fernando de Noronha, resorts em praias cearenses, potiguares ou pernambucanas, nada era mais barato que comprar um pacote de uma semana partindo de Natal rumo à Lisboa, por incrível que pareça. E foi o que fizemos.

Num dos dias de nossas andanças a pé pela cidade fomos a uma loja do tradicional magazine espanhol El Corte Inglés, que costuma ter uma loja gourmet com excelente seleção de vinhos. Conosco um casal de senhores que conhecemos na viagem e passou a nos acompanhar. Fui atendido por um sommelier com quem conversava sobre a visita que tinha feito com a Ka à Vega Sicilia. O objetivo era comprar um Alión, ou algo do tipo. Foi quando nosso novo amigo se aproximou e perguntou ao funcionário do estabelecimento: “você tem aí o Casal Garcia?”. O homem olhou com surpresa e disse: “aqui não, nesse espaço não, apenas no supermercado que fica à direita”. O brasileiro ficou ofendido: “mas por que não? Aqui não é lugar de vinho?”. E ouviu: “sim, mas são vinhos refinados, o que o senhor deseja é um vinho mais simples, que fica no supermercado. Lá o senhor vai encontrar, e deve custar coisa de dois ou quatro euros a garrafa”. Quem lê com maldade pode pensar que o português foi grosso, mas o tom da fala foi ameno. Não o suficiente para arrefecer a frustração e o aborrecimento de nosso colega: “em Jô Soares, certa vez, vi Julio Iglecias dizer que o melhor vinho é aquele que nos agrada e faz bem”. A conversa terminou ali.

CAsal Garcia

Fonte: vinícola

Julio é um aficionado, tem uma das maiores coleções privadas de garrafas do mundo e é dono de uma vinícola que produz o pontuadíssimo Montecastro, bem diferente do Casal Garcia. O mais perto que chegamos do rei da música romântica espanhola, endeusado por Silvio Santos em seu antigo programa Namoro na TV, foi um conjunto de fotos e homenagens a ele numa vinícola que visitamos em 2015 na região de Rueda, Espanha. A despeito disso, é fato que a frase “vinho bom é aquele que nos agrada” tem sido repetida por aí. Robert Parker, o famoso crítico, em entrevista antiga à Revista Época já dizia isso.

Montecastro-2006

Fonte: Decántalo

A sentença virou clichê, mas cabe uma ressalva. Antes de conhecer cervejas artesanais e de beber uma IPA bem feita eu ficava feliz ao ver Skoll em churrasco. Hoje a bebida é doce demais para mim. Isso representa que alterar o paladar e se enveredar no mundo dos vinhos nos desvenda um universo muito especial que pode nos fazer mudar de gosto rapidamente. Comecei alucinado por espumantes nacionais, passei pela identificação de uvas, incluí a variável região e país associada à casta, passei a notar o peso da harmonização e a mudar meu gosto. Até 2016, por exemplo, tinha a certeza que adorava vinhos encorpados e amadeirados da Ribera del Duero, hoje me pego apaixonado pelos pinot noirs do Oregon e alguns da Califórnia. Assim, tenha certeza que é possível adorar um Casal Garcia, gostar de vinhos mais simples e baratos, mas também tenha a convicção de que abandonar algumas certezas é esperado. Hoje os argentinos mais simples feitos de Malbec me apavoram pela doçura, os chilenos mais baratos incomodam pela artificialidade, mas os portugueses, uruguaios e brasileiros nas mesmas faixas de preço costumam me agradar. Por vezes volto num vinho que me agradava faz cinco anos e me frustro. Isso é comum.

Assim, apurar o paladar, sofisticar com um pouco mais de ousadia vai nos fazer descobrir bebidas incríveis. Daquela viagem experimentamos trazer um vinho que nos foi sugerido por um senhor, dono de uma pequena loja em Lisboa que anos depois havia sido vendida: o S de Soberanas, 2004, das Terras do Sado. Divino! Bebido em 2012 estava perfeito e nos leva a arriscar, anotar, guardar as sensações, aprimorar a combinação com certos pratos. Tudo isso vai nos tornando capazes de dizer do que efetivamente gostamos, vai trazendo mais sentido e diversidade para a frase: “vinho bom é o que lhe agrada”.

Soberanas

Fonte: vinícola