Vinho a gente bebe ou guarda? O que a maioria das pessoas diz é que bebe. Mas faz sentido beber a coisa “certa” do modo “errado”? Eu sou do time que entende que a partir de um determinado valor, e isso quem estabelece é você, devemos estudar o vinho para bebê-lo na sua melhor forma. Se eu for a uma loja e comprar um bom Ribera del Duero reserva, com cerca de dois anos de estágio em carvalho e resolver abri-lo muito jovem, certamente tomarei algo bom, mas não o suficiente para encontrar o que ele tinha para oferecer de melhor.

A lógica de ter paciência para esperar começa a fazer sentido quando você passa cerca de cinco a dez anos comprando grandes vinhos. A partir disso sempre haverá algo espetacular para se abrir em sua adega. A questão é saber o momento exato. Pois bem: esse é um dos grandes baratos do vinho como hobby, como lazer e diversão. Não se trata apenas de uma garrafa para derrubar na taça e virar goela adentro. É algo maior, que exige respeito à dedicação do vinicultor, ao seu bolso e ao paladar. O Cellar Tracker é um portal que por vezes sugere o tempo de consumo de algumas garrafas, bem como as vinícolas em geral têm boas informações em seus sites e rótulos sobre isso. Pois bem, vamos transformar essa reflexão em ação, com duas obras de arte que abrimos em casa nas últimas semanas.

A primeira veio de uma viagem à Espanha em outubro de 2015. Visitamos a Abadia Retuerta. No hotel não passamos sequer do estacionamento, na vinícola pudemos entrar numa loja sofisticada. Não se trata de uma casa muito simpática, mas seus vinhos são extraordinários. Nessa passagem levamos cerca de uma caixa de belas garrafas, com destaque para algo inusitado à região: um branco, chamado estrategicamente de “Blanco de Guarda”, sem descrição das castas que o compõem – li algo sobre a presença de Sauvignon Blanc – e uma descrição bem interessante de acordo com o site da casa: “Tras un reposo de entre 5 y 6 meses en barrica, se obtiene un sabor fresco y cítrico, ahumado, ligeramente especiado. Es un vino con cuerpo, untuoso, con un final largo y fresco. Fiel reflejo de nuestra personalidad, tiene un gran potencial de crecimiento”. O negrito no texto é meu, destacando o que senti de maneira magistral e fantástica, sendo a untuosidade algo muito especial. A garrafa que abrimos era 2014, e tenho certeza de que podíamos deixar mais tempo na adega, pois evoluiria para outras experiências, perdendo certas características, mas ganhando outras tantas. O comemos no domingo de Páscoa com um bacalhau ao forno com couve, espinafre, batatas e molho branco. Casaram-se bem demais, mas sozinho o vinho já mereceria nota máxima. Mágico, deixando saudades e curiosidade de comprar mais duas garrafas: uma para ser bebida em cinco e outra em dez anos.

abadia

A segunda experiência veio faz alguns dias, e o vinho viajou conosco na mala em 2014, quando estivemos na Toscana. A Ka comprou um pato e protagonizou um verdadeiro milagre gastronômico. Não que sua comida não seja genial, mas em alguns instantes os profissionais se superam. E aqui ela transcendeu tudo o que existe de possível. Juntou um caldo congelado de um pato de meses atrás, e temperou a nova ave por horas, até chegar a algo perfeito. Para além dessa perfeição, resolveu que cozinharia para o vinho, e entre um potente uruguaio, um intenso argentino e um super toscano ficamos com esse último. Nosso vinho era um blend que combina a refrescante Sangiovesi, segundo o produtor, com uma base estrutural de Cabernet Sauvignon e 16 meses de passagem por carvalho francês. Uma hora aberto e estava perfeito, depois de três horas trazia notas diferentes e ainda estava muito vivo – perceba que apenas quem bebe com paciência conhece tudo o que está bebendo. O Avignonesi Grifi safra 2010 estava perfeito. E o que teria ocorrido se tivéssemos o tomado em 2014 mesmo, quando o trouxemos diretamente de uma visita mágica, com direito a almoço e tudo o mais, indicada pela Mistral? Certamente estaria ótimo. Sei disso porque o provamos lá, mas certamente respeitar seu tempo foi algo absolutamente correto que se casou perfeitamente com o pato. Saúde!

Grifi

Fonte das imagens: vinícolas.