Montar o roteiro das viagens pelo mundo do vinho nunca é tarefa simples. A sensação de que algo vai ficar pelo caminho sem nossa visita incomoda, assim como lotar a agenda de compromissos nos dá a percepção de que não deixaremos espaço para surpresas. Dilemas deliciosos à parte, o que conto aqui hoje é um desses momentos em que a ansiedade dizia que algo daria errado, mas a realidade passou longe disso. Foi incrível.

Um amigo brasileiro que vive na Galícia disse que se a viagem era para conhecer o mundo dos vinhos galegos, a região de O Ribeiro não podia faltar. Nosso objetivo era ficar três noites nas Rías Baixas – que bem contei aqui em textos recentes – e pular direto para Monforte de Lemos e os vinhos da Ribeira Sacra. Abriríamos mão de Bierzo, mais adiante na estrada, e desceríamos de volta para Portugal. Mas segundo ele, O Ribeiro era uma região bacana, pois Ourense é uma cidade que merece atenção e muita coisa em volta poderia interessar. Topei o desafio, e ele tinha razão: a cidade mereceu meio dia e foi bem agradável, mesmo com um pouco de chuva.

A primeira opção de nossas viagens de vinho é: procurar uma vinícola para nos hospedarmos. E aqui fiquei entre duas ou três casas. Região de muitos rios, termas e boa estrutura turística, foi na Gandarela Turismo Rural que apostamos nossas fichas. Uma vinícola pequena com quartos super charmosos: não tinha como dar errado. A uva da região, chamada de joia pelo conselho regulador, é em galego a Treixadura, que os portugueses chamam de Trajadura. Comum nos vinhos verdes, passa longe, na minha opinião, do glamour e dos resultados da Alvarinho, mas merece respeito. Fomos à ela.

A partir daqui uma sucessão de problemas começou a se aproximar. Vamos numerar os desafios: 1) quando fui efetivar a reserva do hotel, os quartos economicamente mais acessíveis haviam terminado, e doeu pagar o que paguei naquele instante; 2) o vinho de Treixadura que bebemos em Rías Baixas tinha se mostrado difícil; 3) faltando poucos dias para nossa chegada, meu amigo disse que tinha uma agenda acadêmica no sábado dia 09 de abril e não conseguimos nos encontrar; 4) o celular de Portugal não funcionava na Espanha, o que eu sabia há alguns dias, mas dificultou ainda mais uma tentativa de agenda com o anfitrião local; 5) o GPS não conseguiu nos levar ao hotel, e em se tratando de turismo rural nos colocou numa “rota florestal” que não combinava com o que precisava ser feito e com o estilo do carro alugado; 6) ao chegar no hotel e solicitar a senha do wi-fi, fomos informados que esse serviço não estava disponível, pois ali não chegava o cabo da operadora; 7) por conta do Covid-19 o restaurante do hotel estava funcionando de maneira muito restrita e servindo pratos que não nos agradaram e; 8) a produção de vinhos ficava em outro local… Pronto, a viagem tinha potencial para dois dias de mau humor. Sério? Nunca. De jeito nenhum. Sofrer em Real é ruim, imagina em Euro. Vamos virar esse jogo?

O hotel-restaurante vinícola é novinho. A família proprietária é agradável, os funcionários são educados, simpáticos, e fomos recebidos por uma gatinha prenhe que se mostrou uma mestre de cerimônias incrível. A casa está sendo construída, a parte onde vão vinificar estava longe de estar pronta e eles ainda produzem vinho em outro local. O quarto “mais caro” era um verdadeiro sonho. Amplo, bonito, bem decorado, com uma super banheira de hidromassagem em um de seus cantos, uma varanda com duas portas duplas e uma vista para o rio Minho absolutamente estonteante. O pôr do sol bebendo o vinho rosê que ganhamos de presente na Quinta do Regueiro foi deslumbrante, com a bebida entregando demais. O sono foi tranquilo, a caminhada no dia seguinte pela margem do rio foi maravilhosa e lembramos que viver sem internet é entregar-se novamente a uma intimidade e a um convívio pessoal muito especiais.

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A ausência do restaurante foi facilmente compensada pelos nossos tradicionais petiscos comprados em supermercados. O desencontro com meu amigo foi sentido, mas em Ribadavia é absolutamente fácil ser feliz e conhecer coisas maravilhosas. A mais especial foi o castelo da cidade, dedicado aos judeus sefarditas que ali viveram e dos quais descendemos. Em termos gastronômicos, o mais genial estava por vir. Você conhece o famoso “frango de televisão”? Claro que sim: aqueles fornos retangulares montados na frente de padarias ou bares em diversas cidades brasileiras que vendem frango assado para comermos em casa. Em algumas cidades existem também as barracas de churrasco dos finais de semana. Pois bem, a Galícia, e especialmente Ribadavia, se orgulha de ser a “terra do polvo” e vende a iguaria, a minha predileta, em barracas montadas nas ruas nos finais de semana – os “pulpeiros”. Uma verdadeira febre de gente passando a pé ou de carro e pegando sacolas com os polvos. Um bico de fogo, um botijão de gás, uma panela grande e octópode para tudo que é lado. Na praça central da pequena cidades de pouco mais de 5 mil habitantes o bacana, num sábado extremamente ensolarado, é pedir um vinho num bar, comprar um polvo na “barraca associada”, sentar, beber, comer e sorrir. E foi o que fizemos: foi absolutamente mágico. Fico imaginando morar num lugar em que todo final de semana eu tenho na minha porta um “pulpo a feira” com muita páprica, azeite e sal. O que mais? Um pão pra aproveitar o azeite que sobra naqueles simpáticos e tradicionais pratinhos de madeira, e vinho, obviamente. E não é que um Treixadura simples, como o Viña do Avó, casou perfeitamente? Genial.

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Fonte: arquivo pessoal e o Pulpeiro é de La Cosmopolilla

Mas ainda tínhamos outra noite em nosso hotel. Depois de perambularmos pelo mundo voltamos pra casa com mais algumas novidades na sacola e o desejo de mais fotos do pôr do sol mágico. Preparamos todo o cenário e resolvi pedir o vinho da casa para acompanhar. Das opções disponíveis abri mão do mais simples, mas também não queria o barricado, para não correr o risco de muita madeira em uvas brancas, algo que tende a não me agradar se não for perfeito. Fiquei então com o premiado: ELIXIR DE GANDARELA. Estava muito gostoso, servido num balde de gelo se mostrou elegante, com notas frutadas e em alguns instantes trazendo toques florais e herbáceos. Um vinho muito simpático que valeria a pena ter trazido na mala. Saímos da Gandarela na manhã do domingo com a sensação de que havíamos descansado ali por dias. Uma experiência absolutamente recomendada e muito especial.

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