Uma amiga foi morar alguns meses em Portugal. Quando voltou entrou em contato e disse que trouxe um vinho de presente para tomarmos juntos. Nada mais generoso e carinhoso. Disse do que se tratava, e desde então tenho pensado com atenção nessa joia. Ela estava falando de algo pouco comum, um varietal da Fundação Eugênio Almeida, que tem no Cartuxa seu símbolo mais acessível no universo de vinhos de qualidade, e no Pera Manca seu monstro sagrado. Já bebi alguns rótulos de Cartuxa, e um único Pera Manca – exatamente com ela. Mas o que nos reservaria o Scala Coeli – Petit Verdot? Destacando que na vinícola atualmente estão à venda o Alicante reserva e o Syrah, pois só as melhores safras de cada casta merecem o rótulo Scala Coeli.

Na cápsula metálica que cobre a rolha está escrito: Cartuxa – Petiti Verdot. O vinho estava descansando na geladeira. Cuidadosamente o tirei de lá, o trouxe para a temperatura ambiente e o abri. Final de semana passado a frente fria estava propícia em São Paulo. Os 15 graus eram ideais. E ele ficou lá. Descansando.

Scalascala 2

Enquanto isso, havia outro vinho que chamava a nossa atenção. Em 2017 estive novamente no Uruguai, um país tranquilo que não me cansa nunca. Almocei na Bouza com alguns amigos, visitamos as caves e fizemos algumas compras. Para além de brancos geniais – não enjoo de afirmar que o Uruguai é terra de grandes vinhos brancos – a casa faz rótulos incríveis com a Tannat. Trouxe na mala algumas preciosidades, dentre elas um Parcela Única.

Esses vinhos na Bouza funcionam assim: eles codificam alguns vinhedos especiais e lançam rótulos com uvas tiradas apenas dali – a letra é o local, o número é a ordem dos terrenos. Nada diferente de alguns lugares. Existem vinícolas que dão nome a um vinhedo especial e o repetem no rótulo do vinho. Existem aquelas que falam em Single Vineyard, ou seja, vinhedo único. No caso da casa uruguaia comprei o B26, varietal de Tannat – que não estava entre os mais caros.

bouza

Ambos eram 2014, e estavam absolutamente prontos para o consumo. Lição zero que já cansei de tratar aqui: vinho requer tempo e cuidado para ser bebido. Comprar vinho caro, elaborado cuidadosamente e não se importar com o acondicionamento e com o tempo de guarda é desperdiçar parte de seu potencial. E aqui tiramos, provavelmente, o que eles tinham de melhor para nos dar.

O uruguaio foi diretamente da garrafa para a taça depois de aberto. O bebemos vagarosamente, então deu tempo de ele respirar bem, a despeito de se mostrar perfeito desde o primeiro gole. Foi aberto por volta das 19h e durou cerca de duas horas de ótimas conversas. O assunto era, por vezes, interrompido por um gole seguido de elogio. Estava magnífico, potente, uma fera com madeira na proporção certa. Esqueço, quando fico longos meses sem beber, o quanto um vinho com carvalho de qualidade é gostoso – por mais que muitos digam que isso esteja saindo da moda.

Devidamente domado pelo ar, o português veio em seguida. Estava absolutamente equilibrado, de uma elegância única. A leve picância da casta esteve presente de forma discreta. O vinho era, efetivamente, de uma beleza única. E diante desse encontro de bebidas incríveis só nos foi possível fazer o paralelo com a lógica de A Bela e a Fera. A bela portuguesa e a fera uruguaia…

Detalhe final para o que comemos com eles. A Burrata cremosa casou perfeitamente com os tomates e o sul americano se deu surpreendentemente bem aqui. O pão de calabresa do Ogro também foi muito bem. Mas o risoto de pinhão com queijo de cabra e o cordeiro não deixaram de nos lembrar que essa carne é a essência da harmonização dos tintos uruguaios de primeira linha. O português não deixou de se divertir com o prato, nos trazendo a certeza de que a dupla nos devolveu a alegria de encontrar uma amiga querida numa noite deliciosa. Saúde!