Não gosto muito daquela história “vinho bom é aquele que te agrada”. Bobagem. Tem gente que gosta de vinho ruim. O vinho não passa a ser bom em termos absolutos, apenas relativiza-se a lógica da qualidade em nome de uma preferência pessoal. O vinho não é BOM, mas o bebedor se contenta com algo de pouca qualidade. E nesse sentimento pode vir embutido um conjunto imenso de coisas.

A primeira delas associada a sentimentos mais subjetivos. O clássico dessa história é: numa viagem incrível você toma um vinho que acha genial. Suponhamos aqui que o consuma na visita dos sonhos a uma vinícola. Compra uma garrafa, o carrega na mala, chega em casa e num dia especial abra aquela garrafa. O trajeto dificilmente lhe fez mal, mas como diz a canção: “sei que nada será como antes”. Seu paladar evoluiu? Mudou? A chance maior aqui é: o ambiente impactou o seu gosto. E outras tantas variáveis podem impactar essa história toda.

Pois bem: 2020 foi um ano difícil, e salvamos nosso prazer de visitar vinícolas porque em fevereiro, quando tudo ainda estava no oriente, conseguimos ir à Espanha sem grandes riscos. Depois: casa. E em 2021, no comecinho do ano, escapamos até Louveira, interior de São Paulo. Foi a única saída de carro para além dos bairros que nos cercam em um ano. Procurávamos um pouco de paz. Numa manhã de sol queríamos ver o verde dos campos. Sentir o cheiro do mato. Deu certo.

Lembrei que por lá existia uma vinícola que faz alguns anos um amigo vereador, hoje prefeito, me levou. Fomos recebidos à ocasião pelo proprietário, que em meio a uma quantidade elevada de visitantes nos chamou de canto e disse ter um Syrah que tratava com carinho. Estávamos na Vinhos Micheletto, e os produtos de uma primeira prova eram difíceis. Aquelas bebidas de mesa, doces, complicadas e com baixo teor alcoólico. Mas o Syrah foi desafiador. Tinha algo puxado a couro, suor de cavalo, aromas intensos até demais. Na boca estava bacana, e só não levei uma garrafa porque à época a casa não trabalhava com cartão. Mas fiquei com aquilo na cabeça. E olha que faz tempo. Se puder chutar vou dizer que foi entre 2009 e 2012.

Pois dessa vez acertei o caminho e lá fomos nós. Máscara na cara, álcool no bolso, todo cuidado do mundo e algo como uma década desde aquela primeira prova. Notei que a estrutura do local está bem melhor, e o passeio agrada. Nas prateleiras da loja o Syrah estava lá, imponente, carro chefe da casa. Garrafa da Borgonha, rótulo elegante, destaque para a colheita de inverno e R$ 55,00. Não resisti. Trouxe pra casa.

Tentei abrir algumas vezes e a Ka resistiu. Na quarta-feira, dia 01 de abril, sem querer fazer qualquer alusão à data, abrimos. No nariz alguma coisa me deu sensação de sintético, lembrou um pouco o Syrah de Mianmar que bebemos e estava bem desajustado. Na boca veio o sentimento de quando tomei um vinho paranaense pela primeira vez: não é ruim, mas falta um pouquinho. Talvez tempo pras vinhas, envelhecimento em garrafa, acerto no carvalho, menos chuva. Sinceramente: não tenho condições técnicas de dizer, mas uma coisa é certa: estava infinitamente melhor que a prova de alguns anos, e muito mais legal do que imaginávamos. Tá vendo? Vinho carrega expectativa. A garrafa foi inteira, sem qualquer dificuldade, e com um detalhe: o vinho evoluiu um pouco depois de aberto e não morreu. Resultado: simpática experiência. Bem simpática.

Syrah

No dia seguinte abrimos um Tannat da Guatambu, de São Pedrito-RS, feito em parceria com associação de criadores de gado Angus. Conhecemos bastante coisa da casa, a temos como uma boa referência na região extrema do Rio Grande e o resultado aqui: difícil. Vinho ácido, morreu rápido, frágil, em alguns momentos com dulçor acima do que nos agrada. No rótulo, 13% de álcool com descritivo afirmando que trata-se de uma bebida potente para levar com carne. A 13% é potente? No site figura 14%. Paguei R$ 57 numa promoção de loja em Caxias. Resultado: como esteve abaixo do que esperávamos, passou longe de agradar. E qual dos dois é melhor? Para mim o Micheletto, mas não há como comparar as casas em termos de tradição e capacidade de acertar. O Angus é um vinho simples de uma casa boa, o Syrah é o top de um local que se esforça, mas produz vinho muito simples. E a gente vai experimentando essas surpresas e aspectos relativos deliciosos do mundo do vinho.

Tannat