Adoro escrever sobre vinhos, sobretudo porque, para tanto, preciso minimamente beber e vivenciar. Trata-se de um hobby, algo que nos últimos anos aprendi a valorizar em longas conversas com a minha terapeuta. É por este motivo que resisti tanto a escrever esse texto. Ele fala de vinhos, mas me remete ao meu trabalho de cientista, educador e analista político. Não gosto de investir meus preciosos minutos de lazer e meu espaço dedicado ao prazer para trabalhar. Mas vamos lá. Algo dentro de mim me diz que preciso colocar isso aqui para fora.

Eu e a Ka viajamos atrás de vinhos faz muitos anos, desde 2007, tendo começado exatamente pelo Rio Grande do Sul. Nessa viagem visitamos, por exemplo, a Salton e a Aurora. E nos últimos 16 anos colocamos o pé em mais de 100 vinícolas espalhadas pelo mundo. Já conversamos com dezenas de produtores, ouvimos suas dores, curtimos histórias, vivenciamos encantos e dificuldades. O vinho nos conectou, e conecta, a muita gente querida. Mas esse universo tem problemas agudos, como todos os demais setores de uma complexa sociedade pelos mais diferentes lugares do planeta. Por exemplo…

Em 2012, na vinícola de um amigo no Priorato, ele nos repetiu que a mão de obra sazonal era um desafio imenso para quem faz vinho. Sua produção é absolutamente concentrada nas questões de sustentabilidade, e depois de reclamar dos vizinhos que utilizam veneno nos vinhedos, passou a falar do perfil de trabalhador que prefere para a sua colheita. Comentou que moradores locais, de pequenas vilas espanholas, nasceram inseridos culturalmente no universo do vinho. Cobram mais caro, mas entendem rigorosamente o que fazem. São, assim, melhores em termos de qualidade e proximidade com o produto do que aqueles que vêm do leste europeu e do norte da África. É uma escolha, que segundo ele nunca pode derivar para a ausência de respeito por quem quer que seja.

Em 2013, na icônica cidade de Saint-Emilión, região vinhateira das mais nobres da França, notamos um exagerado volume de carros com placas da Romênia, principalmente pequenos furgões de serviço. Não nos furtamos a perguntar, em mais de um lugar, que exagero era aquele estacionado ao redor dos vinhedos. Eram trabalhadores sazonais que cruzam mais de 2.300 quilômetros de estradas. Gente que participa de etapas do cultivo e da produção em poucas semanas. Algo nos foi dito a respeito daqueles atores: desde o quanto eles eram fundamentais para todo o processo, até alguns comentários preconceituosos que nos incomodaram bastante.

Em 2014, na região da Toscana, perguntamos no hotel quem fazia o trabalho de colheita dos vinhos na região. Normalmente famílias locais historicamente espalhadas pelas localidades mais rústicas do país, mas também africanos que cruzam o Mediterrâneo de maneira subumana e aceitam trabalhar em condições informais e infinitamente piores que a média dos europeus. Ficamos alarmados, preocupados. E essa história chegou a se repetir em outras localidades.

Por último, em 2022 no Porto, uma visita a uma vinícola nos colocou diante de um telão onde os funcionários da colheita eram os atores principais do vídeo institucional. Tudo muito simples, rústico, mas absolutamente digno. Chamou a atenção a intimidade com que o ancião da família proprietária da gigante do vinho estava inserido no meio dos operários em relação muito carinhosa. Nossa guia disse que ele era dos raros que pagavam salários o ano inteiro para todos os seus operários, ou seja, não existia sazonalidade na contratação daquele povo, o que nos chamou a atenção, pois economicamente isso é muito desafiador. Hoje, garanto, bebo os vinhos da casa com muito orgulho, mesmo eles sendo caros.

Digo tudo isso porque mão de obra sazonal no universo do vinho é algo comum e complexo faz tempo e em todo canto do mundo. Não digo isso, no entanto, para atenuar em nada o que assistimos nas denúncias vindas do Rio Grande do Sul nas últimas semanas. E nesse caso, é absolutamente essencial pensarmos em três desafios imensos associados ao caso do uso de mão de obra em condições análogas à escravidão por três vinícolas das Serras Gaúchas.

MPT-RS

Foto: Revista Fórum, referenciando o MPT-RS

O primeiro ponto: para a história tenebrosa do Brasil entender o uso do termo “análogo à escravidão” é importante porque nosso passado escravagista é agressivo, tenebroso, medonho, desumano e condenável. Mas devemos lembrar que trabalho escravo é algo, infelizmente, milenar, e as condições variaram demais entre os povos e as culturas. Médicos, professores, bibliotecários, artistas foram escravos na história de diferentes civilizações. E se para os nossos padrões ocidentais de humanidade, desde o século XIX, legalmente, nada disso pode ser aceito, escravidão precisa ser entendida como algo por vezes infinitamente mais sutil do que aquilo que lemos em documentos, assistimos em representações artísticas, conhecemos historicamente em relação ao Brasil. Assim, o primeiro desafio é apreender o que sentido da condenável e criminosa escravidão da qual as casas estão sendo acusadas em 2023. Tenha certeza: pode ser muito menos tenebroso do que tivemos até 1888, o que representa dizer que muito do que se viu no Rio Grande do Sul nos últimos dias preocupa demais e tem tudo para se enquadrar sob esse horrendo crime. Resultado: não adianta defensor dizer que aquilo tinha pouco do que sabemos sobre escravidão no passado, pois nosso parâmetro histórico é o submundo do que existiu de mais desumano. Para os limites percebidos desde ao menos o século XX o que vivos agora é bizarro.

O segundo ponto: o quanto o Rio Grande do Sul e o vinho brasileiro vão pagar pela irresponsabilidade de alguns? Não podemos correr o risco de colocarmos sob uma mesma tenda todos os produtores do país e daquela localidade. Existe muita gente boa nesse universo, muita correção, muito compromisso, muitas famílias que vivem disso de forma digna em todos os elos do processo produtivo. O que temos hoje, para além de tantos outros setores acusados de coisas criminosamente semelhantes são: Salton, Garibaldi e Aurora, que assinaram acordo para pagarem R$ 7 milhões como forma de atenuar as ocorrências, envolvidas. E por enquanto ninguém no mundo dos produtores, além dessas empresas, deve explicações e merece, se comprovadas as acusações, punições e generalizações para além do trio.

Por fim, o terceiro ponto: não existe qualquer preparo para se lidar com o tema. Isso está absolutamente nítido. Faz anos, como empresário, assino contratos de prestação de serviços com empresas que tratam de dizer muito sobre o quanto quem trabalha para mim tem que estar inserido em todos os parâmetros éticos e legais de prestação de serviços. Para que serve tudo isso? Hipocrisia ou a necessária demanda por respeito e dignidade? Empresas gigantes, em diferentes lugares do mundo, incluindo o Brasil, já foram acusadas de assombros atrelados às condições de escravidão. O mundo do vinho é, infelizmente, apenas mais um capítulo desse terror. E mais uma vez assusta como as respostas são horrendas. A comunicação falha associada a valores culturais esgarçados produzem a piora do ambiente.

Uma associação de empresários locais, por exemplo, logo após a ocorrência emitiu nota culpando os programas assistenciais federais pela situação. Estranhos os argumentos, pois obviamente se o Estado brasileiro pactuou que arrefecer a desigualdade representa distribuir dinheiro público na forma de benefícios que garantam dignidade, como poderia a mão de obra se tornar mais miserável e afeita a esse tipo de condição bizarra de trabalho?

Segue no campo das péssimas reações as tardias respostas das casas que aparentemente – para não dizer nitidamente – agiram para reduzir prejuízos às suas imagens. Salton e Aurora, por exemplo, demoraram pra falar algo. No portal da primeira um apelo para mais de 110 dez anos de história, que em alguns casos não valem de NADA, e algumas referências a termos bonitos como ESG, sustentabilidade, compliance etc. Marketing ou realidade? Uso aleatório ou incorporação cultural? Será que no contrato com a terceirizada acusada de escravizar mão de obra constavam todos aqueles itens que citei que aparecem nos contratos que eu assino? Se sim, empresas gigantes como estas nada fizeram para fiscalizar as condições do que estavam pactuando com seus fornecedores? Nunca passou pela cabeça de quem contrata humanos observar o que fazem seus verdadeiros patrões? Nunca tiveram curiosidade de reunir essas pessoas numa boa rodada de avaliações lhes perguntando de onde vêm? O que fazem? O que sentem? Pois é. Ou acham apenas que “ofertar uma oportunidade de ganho para subsistência” é o suficiente? Algo ao estilo: “dê graças a Deus de eu te contratar e pagar”.

Há ainda que se mencionar a fala tresloucada de um vereador de Caxias do Sul, de nome Sandro Fantinel, sugerindo que a relação é realmente distante e desumana. Longe de mim imaginar que aquele tipo de reação tenebrosa representa toda uma sociedade, mas é indiscutível que o sujeito teve votos. Foi eleito. Representa alguém, no plural. Este ser foi exemplarmente expulso do pequeno partido ao qual pertencia: o Patriota. Dias depois apareceu choramingando e dizendo que estava arrependido. Sua família teria o condenado, a mídia o execrou, ameaças perigosas do ponto de vista legal surgiram e a sua dor era grande demais. Era mesmo? Entre a expulsão e o vídeo da “regeneração”, onde ele atribui a um “lapso mental” o pronunciamento que fez na tribuna, isso não ficou evidente. Sem qualquer sinal de lapso, ou em transe continuado, o vereador chegou a afirmar que escolheria livremente entre o PL e o Podemos da cidade para migrar de partido depois de ter sido expulso, afirmando que ele era melhor que a legenda que o defenestrou. Isso é gesto de arrependido?

E agora? Será cassado? À Polícia Federal ele já prestou depoimento. E quero terminar destacando que durante sua fala na tribuna não assistimos a qualquer reação incisiva de seus pares. Precisou o caso viralizar fortemente por todo o país, e por algumas partes do mundo, para que os coleguinhas pedissem uma abertura de processo. Por quê? O ambiente é bizarro a esse ponto? É cultural dizer tudo aquilo? Ou ninguém ouve o que os pares falam no Legislativo? A resposta é um mix de tudo isso, assim como em nossa sociedade ainda estamos vivendo a escravidão, a xenofobia e o racismo. Infelizmente. Mas quanto antes assumirmos isso, quem sabe passemos a ensinar nossos filhos e filhas na escola o quanto devemos ser eternamente capacitados para o complexo exercício do convívio coletivo, do respeito, da dignidade etc.

Que na semana que vem eu possa voltar a falar sobre vinho…