Imagens não faltam sobre o que significa colher uvas na região de Ribeira Sacra na Galícia, Espanha. Estamos falando de montanhas mais íngremes que aquelas localizadas ali pertinho, no Douro, em Portugal. Fotos radicais, por vezes, mostram estruturas de metal com escadas e gente amarrada em cordas para que a fruta das videiras seja colhida e chegue às nossas garrafas. Incrível, e eu precisava ver isso de perto.

Apostei todas as fichas num amigo que fizemos na Catalunha faz dez anos. Ele produz em diferentes locais da Espanha e na Ribeira Sacra faz algo bem interessante em vistas radicais que suas fotos não escondem. O contato foi, como de costume, caloroso, mas a data não coincidiu. Ele e toda sua equipe galega, pequena, estaria nos Estados Unidos para um evento no começo de abril. Pedi alguma dica, mas a vida engoliu a conversa e não recebemos respostas.

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Fonte: Fredi Torres, Ribeira Sacra, Silice Viticultores

A alternativa seria encontrar um bom hotel que fosse instalado numa dessas vinícolas. Não foi por falta de procura. Tentei de tudo, mas ou a coisa era exageradamente simples ou extremamente sofisticada. Isso deixou a gente mais longe de nossos sonhos, paciência. A solução era viajar, se hospedar estrategicamente e conhecer alguma vinícola na lógica da marcação local de uma agenda. Vamos tentar.

A região é absolutamente estupenda e se destaca turisticamente por três grandes elementos: vistas naturais deslumbrantes; construções históricas de uma arquitetura romântica católica muito especial e; esportes mais ou menos radicais ao ar livre. O vinho existe, é produzido, mas o enoturismo não é o carro chefe. Foi sob essa percepção que saímos dos arredores de Ourense, atravessamos os cânions do rio Sil, paramos em miradores estonteantes onde foi possível ver de longe a produção de uvas nas encostas íngremes, e chegamos do outro lado da cadeia de montanhas, na bem mais plana Quiroga. Dali imaginamos que seria possível visitar Monforte de Lemos, a capital do vinho da Ribeira Sacra e outras localidades alternativas em busca de vinícolas. Foi quase isso o que findamos fazendo.

Domingo é dia de ver motoqueiros superequipados e suas máquinas pelos interiores da Europa. Isso é absolutamente comum na Espanha, França, Itália, Alemanha e Portugal, países que conhecemos melhor. Depois de um espetáculo natural nas margens elevadas do Sil, paramos em uma pequena cidade para almoçar. Turismo local, daqueles em que as pessoas têm dificuldade de atender quem não conhece o “esquema”. Paciência, isso está longe de ser um problema. Comida simples, boas caminhadas e vontade de seguir adiante.

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O hotel de Quiroga foi escolhido com dificuldade. Confesso que à primeira vista não achamos o que desejávamos. O Casa do Estanco ficava numa avenida movimentada para o ritmo de vida local – e bem tranquila para nós. O encontramos com facilidade, paramos o carro na rua sem qualquer problema e percebemos que o final da tarde de domingo guardava um agito típico de interior. O quarto era muito charmoso, confortável, pequeno e agradável. Tudo muito bem montado. No pequenino saguão do térreo uma estante com alguns vinhos. Jantamos num restaurante próximo que simbolizava o agito da cidadela, com muitas famílias, bela decoração, um agradável jardim e futebol na TV. Uma só garçonete dava conta de dezenas de mesas externas. Extenuada e com dificuldade de atender a tudo o que “seu mundo queria”, deu dó, mas também irritou. Fomos dormir.

Na segunda-feira percebemos no bom café da manhã que a identidade gráfica dos rótulos dos vinhos expostos era idêntica ao visual do hotel. Custava perguntar para um jovem proprietário que estava com seu notebook aberto numa das mesas se as coisas tinham relação? Golaço. “Si, soy productor de vinos”. Juan é tímido, se define como um homem simples que nasceu na região e sonha em ter um negócio próspero. Ele merece. Com sua sócia, Noemi, investiram no hotel e aliados a um produtor argentino estão começando nos vinhos. A “Casa de Outeiro” é projeto de 2019. Os vinhos reúnem uvas de produtores locais e são feitos em estrutura construída em pequena zona industrial na cidade. Mas no médio prazo essa história vai mudar radicalmente, se tudo der certo, e se tornará ainda melhor.

Juan percebe nosso entusiasmo pelos vinhos e marca uma visita para percorrermos os vinhedos na hora do almoço. Pronto. Era parte do que queríamos. A ideia original dos sócios é ousada: recuperar as ruínas de uma casa do século XV de família tradicional local, produzir e constituir estrutura de enoturismo e rodear a propriedade com vinhas novas que já estão plantadas. Um verdadeiro “latifúndio” diante das demais propriedades, localizado sobre uma pequena montanha de onde vemos a cidade. Tudo muito interessante, bastante promissor, algo que nos aguça o desejo de voltarmos em três, cinco anos. Não há como entrar no que restou da casa, e Juan nos leva pelos vinhedos embaixo de uma fria e persistente garoa, ou chuvinha, da Galícia, contando histórias e falando de planos. Eu particularmente fico emocionado: com o brilho nos olhos dele, com o desejo de mostrar e falar do que será sua vida, e com muitas curiosidades sobre os vinhos dali. É mágico conhecer empreendedores.

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O segundo capítulo da conversa ocorre no galpão onde o vinho é produzido. Centenas de caixas, todas vendidas, serão espalhadas por diferentes locais do mundo. Até para o Brasil o Quinta do Outeiro viaja. A identidade visual é bonita, os vinhos brancos predominam, e Juan fala com orgulho da moderna estrutura que ali tem. A hora do almoço já avança. Voltamos para o hotel, pois chegou a hora de provar algo. Taças sobre a mesa, comidinhas deliciosas e os vinhos. Juan produz algo absolutamente acima da média de tudo o que bebemos até aqui na região. Quando digo isso ele sorri sem graça, valoriza os demais, diz que eles se empenham, e que todos têm seu valor. Perfeito, concordo. Mas o que temos ali é efetivamente diferenciado e muito bom. Os brancos, fortemente a base da casta Godello, e os tintos, onde predominam a uva Mencía, aparecem em três linhas: Gama Origem, Gama Escudo e Gama Histórico. Teor alcoólico elevado nos brancos, barrica de carvalho nos mais sofisticados e sabores especiais demais. Juan tem orgulho do que faz, e mesmo demonstrando cuidadosa humildade, sabe que faz diferente. Os vinhos são muito bons, e não deixamos de trazer algo para o Brasil, pois ele afirma que a despeito da elevada qualidade, se tivermos paciência beberemos algo ainda melhor em três ou cinco anos. Trato feito.

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Na parte da tarde fomos à Monforte Lemos. A cidade estava fechada para “la siesta” e era segunda-feira, dia menos intenso para quem trabalha domingo com turismo. Caminhamos bastante e tivemos dificuldade para encontrar um bom local para comer e beber algo. Opções abundavam, todas fechadas. Quando encontramos algo, a qualidade faltou. Mas no final deu tempo de conhecer o grande escritório do Centro de Vinho de Ribeira Sacra, onde fomos muito bem atendidos e ouvimos grandes elogios ao nosso anfitrião da Casa do Outeiro e seus vinhos. A ideia ainda era tentar conhecer uma vinícola daquelas penduradas nas encostas e recebemos algumas sugestões. Na conversa com Juan, ele nos disse: aquilo é o que há de mais atraente, mas quem produz os grandes volumes de vinhos dessa região somos nós aqui das terras mais planas. Aquilo é importante, interessante, e atrai o turismo.

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No dia seguinte rumaríamos para Portugal. Localizei no caminho algumas possibilidades sem desviar muito da rota. Mas o chão era longo e o caminho, com chuva, nos reservou bonitas vistas em parques inóspitos. O que divide as nações ibéricas é deslumbrante. Desistimos da vinícolas, pois queríamos chegar em Montalegre, Portugal, na hora do almoço. Por lá existe história, um castelo lindíssimo e uma alheira DOP que não podia deixar de ser comida na passagem. Foi o que fizemos. Abrimos mão, dessa vez, das vinhas dependuradas em nome de alheiras perfeitas. Valeu…

Casa de Outeiro | Bodega y viñedos en la sub-zona Quiroga-Bibei