Queria que vinho não começasse pelo bolso. Mas no meu caso muitas vezes começa, e isso me causa mediocridades desnecessárias. Parece que sobre o meu prazer de beber um bom vinho paira uma nebulosidade econômica. Queria abrir garrafas sem saber o preço e me refestelar com mais naturalidade. Não que eu não compre vinhos caros e não os beba em ocasiões especiais, mas não faço isso com naturalidade. Esse céu por vezes nebuloso precisa ser arrefecido, a despeito de obviamente eu não ter recursos infinitos, tampouco ser afeito a maluquices.

Dia desses saí de casa com a incumbência de levar para um amigo querido um Alvarinho que não corresse qualquer risco de passar longe da genialidade. Da parte dele sei que tomaríamos um espanhol, e da minha procurei um português. Relatei esse encontro aqui no Misturinhas, foi espetacular. Duas monstruosidades. Na Mistral, a minha garrafa custou mais de R$ 250. Natural? Não. Para mim não é trivial sair de casa e colocar esse valor em 750 ml. Valeu? Cada gota. Cada risada. Cada gole. Cada brinde. Então? Sim. É isso: quando o céu fica azulzinho eu fico feliz. E lembrarei daquele dia por muito tempo. Mas até aí…

Alvarinhos

Quinta-feira depois do Carnaval coloquei na cabeça que gostaria de ir no wine-bar A Vinha, aqui pertinho de casa, onde antes funcionava o Flua, sobre o qual já escrevi. Renata, a proprietária, faz o que entendo ser a melhor massa de empanada que já comi. De uma leveza única, as serve depois de assar, nada de frituras. Os recheios sempre encantam. Um melhor que o outro. Algo divino para se comer com muito carinho e atenção. Mas o estabelecimento é uma casa de vinhos, e eles estão por lá.

O que mais me chama a atenção, e esta é a terceira vez que vou ao A Vinha sob esse nome, é a capacidade de encontrarmos coisas muito precisas e delicadamente garimpadas. Trata-se de um lugar para quem minimamente entende de vinho e quer qualidade naquilo que vai tomar. Eu diria que o ambiente pequeno e extremamente acolhedor recebe quem sabe beber. Pois bem.

Na primeira vez que estive por lá, com duas amigas, bebemos um vinho laranja da Casa Viccas. Essa é uma das vinícolas que faz vinhos disruptivos mais legais que encontrei no Brasil, num patamar semelhante àquele associado ao que bebi de Eduardo Mendonça, e um degrau acima, em termos de ousadia, ao que provei da Cão Perdigueiro. Aqui uma pausa: não sei se estou sendo correto de colocar essas três propostas de produção numa mesma cesta. Se errei, peço perdão, quem escreve é alguém que sente demais, e entende de menos.

Mas voltemos. A segunda passagem por lá foi rápida. Numa noite sozinho, com a casa quase fechando, uma taça pra encerrar a balada. Não me lembro ao certo o que bebi, mas acho que foi um Merlot nacional bem ácido. Gosto. Estava bom. Lá não tem erro.

Entrei no bar quinta pós-Carnaval com a Ka, e Renata estava lá. A conversa durou a noite toda, super agradável, como de costume. Perguntei o que tinha para nos oferecer de branco, e sobre a mesa ela colocou quatro opções: um Chardonnay francês, que eu sabia que não seria o meu escolhido; um Pedro Ximenez argentino com narrativa bem alternativa que a Ka descartou; um Loureiro português a um preço que me leva a beber bons alvarinhos, e aí a disputa fica difícil para mim e; um espanhol. O que é esse espanhol? – perguntei interessado, mas já assombreado pela maldita nuvem do valor…

Confesso que minha mediocridade, antes de qualquer coisa, bateu o olho no preço: R$ 178, e fiquei um pouco desconfortável com esse maldito sentimento que me atormenta. A resposta, no entanto, foi desarmando carinhosamente todos os meus piores movimentos. Como é bom conversar com Renata, em sua calma acolhedora mesclada à paixão pelo que faz. Ouvi que se tratava de um vinho de uma região muito próxima de Valência. Ponto pro vinho, pois estivemos ali por perto em 2020 e amamos o local. Que os produtores tinham uma proposta super alternativa, de cuidar da região e valorizar as características da localidade. Mais um ponto pro vinho. E que aquela casta, Tardana, era autóctone e extremamente rara. Pode abrir o SOL – nome do vinho. Eu me rendo. As nuvens se foram.

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Foto: site da vinícola Bodegas Gratias

A bebida estava incrível, e casou perfeitamente com uma caponata de cinema e com as empanadas do dia: queijo meia cura, deliciosa, e pernil bem desfiadinho, impressionante. Nada de afetismos adoçados, nada de exagero algum na bebida e mais uma casta nos meus registros de colecionador. Sinceramente falando: um vinho equilibrado, austero, em linha reta e, o mais importante de tudo: raro. Saí de lá feliz. Primeiro por ter domado minha contenção, e segundo por ter sido levado a algo muito especial.

Mas veja que interessante. O “investimento” rendeu muito mais do que uma boa noite ao lado da Ka, no wine-bar A Vinha, da Renata. Chegando em casa fui visitar o site da Bodegas Gratias, e lá estão os donos dizendo: “o lugar onde a tradição é apresentada ao mundo moderno”. E em seguida as castas que eles cultivam: a queridinha aqui de casa, a tinta Bobal, que encontramos aos montes pelas terras valencianas e por vezes aqui no Brasil, e as raríssimas Tardana, Pintaillo, Marisancho, Pedro Juan etc. Isso não tem preço. Ao colocar a vinícola no maps, descobri que passamos a menos de 30 quilômetros dali em 2020, e que a microrregião tem boa estrutura para um simpático enoturismo, incluindo o próprio povoado extremamente charmoso de Alcalá de Júcar, onde está a vinícola, e as paisagens naturais de Valle del Cabriel. Logo lembrei do sentimento idêntico, descrito aqui no blog, quando me deparei com um vinho de Cebreros, perto de Toledo. Tá vendo? O vinho rendeu infinitamente mais do que eu poderia imaginar. O Sol, mesmo que “tardanamente”, trouxe calor pra alma e pro coração. Por mais visitas ao A Vinha, por mais empanadas, vinhos raros e, principalmente, viagens.

A Vinha

Foto: A Vinha – retirada da conta @avinhabar no Instagram