Existe uma frase comum entre viajantes internacionais: quem converte não se diverte. Isso serve para mostrar que saindo do Brasil, se você andar com aquela calculadora na cabeça multiplicando preços pelo valor do real é capaz de perder oportunidades que, a despeito de caras para o seu bolso, podem esvaziar o seu prazer. Não quero me aprofundar muito nisso, pois tenho uma dificuldade imensa de desligar esse mecanismo mental quando viajo. Paciência. O que quero dizer é que a lógica da conversão também funciona em solo brasileiro quando o assunto é, por exemplo: vinho. Isso mesmo. Olhar o preço de um rótulo na vinícola europeia, por exemplo, e o comparar com o que o restaurante está lhe cobrando aqui pode assustar de maneira expressiva, sobretudo diante de certas narrativas e conjunturas.

Vinhos têm sido vendidos sob discursos diversos. Dia desses numa loja tentaram me dizer que o vinho era caro porque o produtor não usava energia elétrica, não utilizava defensivos agrícolas, não tinha as barricas de carvalho etc. Minha pergunta: se ele não tem nada disso, o vinho dele não deveria ser mais barato? Depende. Pode ser que por conta disso tudo o rendimento seja menor. Vai saber. Um dia estudarei o custo do vinho, mas não é sobre isso que estou falando. O que quero dizer é que o vinho não é o líquido que está na garrafa apenas. É uma série de outros fatores. E você paga mais ou menos por eles.

Com base em tais percepções, tenho que por vezes, diante de nosso humor, astral, energia e instante, vale a pena esquecer um pouco o preço das coisas. E é sobre isso que tenho algo a dizer: prazer. Moro num bairro em São Paulo que ainda conserva parte de sua estrutura tradicional de meados do século XX. Entre casas imensas e sobrados mais simples existem algumas joias do universo gastronômico. Cervejarias artesanais, bares, pequenos restaurantes e mercados. Tem coisa muito legal pela combinação da Vila Romana, Pompéia e Vila Ipojuca.

Na Vila Romana, O Pingado é um bar de cervejas artesanais com predominância das nacionais, que contém uma coleção incrível de cachaças e faz uns petiscos e sadubas geniais com charcutaria e laticínios de primeira qualidade. Lá quem dá as ordens é o mineiro Dudu, um cara simples, jovem, voz calma, carinho no coração e cabeça boa. Dia desses ele me perguntou: você conhece o Flua? E eu: O que é isso? E ele me explicou: um wine-bar aqui no bairro, na verdade na Vila Ipojuca, que vende vinhos bem incomuns e improváveis. Tem algumas comidinhas, é pequeno, numa garagem de um sobrado simpático, abre de sexta a segunda-feira, tem uns cursos etc. Pensei, refleti, passei a seguir no Instagram, vi que era muito perto de casa e fiquei com isso na cabeça. Semana passada fomos lá.

São apenas cinco mesas, duas fora, na calçada de uma rua muito pouco movimentada que vejo de minha janela. O clima é de bar de bairro. No sábado quatro mesas estavam ocupadas, a menor, de dois lugares, por mim e Karyna. Nas demais, todos estavam com seus cachorros. Clima tranquilo. Sossegado, e até com o casal da mesa ao lado passamos a trocar altas ideias sobre as delícias de morar no bairro. Eles, habitantes do agitado Baixo Pinheiros, se animaram.

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Lua nos atende, e fala das delícias que Renata prepara. A conserva de berinjela estava deliciosa, mas quem ganha a noite são as empanadas. Os dois recheios oferecidos são legais: queijo canastra ou filet mignon defumado com queijo de cabra. Muito gostoso, mas o destaque aqui é para a massa. Absolutamente perfeita, diferente de alguns “pasteis” pesados que comemos pelo mundo. Assada, delicada e muito bem feita. Ótimas, mas estamos aqui para falar de vinho.

Não existe uma carta. Entendi que o local oferece vinhos com base em narrativas especiais. São rótulos que atendem características específicas. Pequenos produtores, raridades, discursos corretos para a saúde e coisas do tipo. Opções não faltam e todas as aproximadamente 30 alternativas ficam expostas numa prateleira de madeira iluminada que mostra a alma do local. O jazz toca baixinho ao fundo. Me aproximo das garrafas, olho os rótulos, fico com vontade de perguntar muito sobre várias coisas que não conheço, existe boa diversidade de países. Fico realizado quando chego num lugar e conheço pouca coisa, me sinto aguçado, provocado. O vinho mais caro é um alemão de um litro, branco, uma combinação improvável de fatores e características. Lua, que gosta de vinho laranja, e isso me encanta, me explica que são 600 garrafas produzidas, e 200 delas no Brasil. Genial.

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O vinho mais em conta é um pinot chileno. Passo. Pode ser bom? Claro que sim, afinal o Pour Ma Guele com mais de 15% de teor alcoólico é lindo. Poderia ter sido ele, mas não foi. Pergunto sobre alguns rótulos que vi no Instagram. Terminaram. Mas não faltam opções. Escolho um vinho da Serra de Gredos, denominação de origem Méntrida, numa formação montanhosa perto de Toledo, não muito distante de Madrid que está no alvo para as próximas viagens. Naquela região parece reinar a Garnacha, que tem nos agradado mais que a Tempranillo faz anos. Ali ao lado a região de Cebreros nos trouxe bons vinhos dessa uva.

O Ganadero é orgânico, não tem indicação de safra, e no rótulo carrega um touro preto vestido ao estio James Dean. Divertido. O vinho começa difícil, mas se abre e mostra algo muito correto. Fica bem gostoso com 40 minutos e casa bem com o que estamos comendo. O jazz é agradável, a noite está gostosa. O local ao lado de casa é pequenino e acolhedor, Lua e Renata são muito gentis, o casal de clientes completa de forma muito bacana o ambiente. Valeu cada minuto.

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Mas voltemos às reflexões iniciais. Fiquei tão curioso com o que estava tomando que fui olhar o nome da vinícola. Chama-se Canopy e faz vinhos bem interessantes. Seu Cebreros é caro para os padrões locais, e existem rótulos interessantes. Num deles, o Loco, a garrafa vem envolta num tecido imitando uma camisa de força. Genial. Entro na loja on-line por pura curiosidade. O vinho custa seis euros, convertidos diretamente me levam a menos de R$ 50. Olho para as lojas brasileiras, e em lugar algum ele custa menos de R$ 150. Paguei R$ 180 no bar, e 20% não significa um acréscimo expressivo na passagem loja-restaurante – pelo contrário. Do ponto de vista econômico um pragmático de plantão ficaria chateado e buscaria um “culpado”. Mas começo a calcular: o trabalho acurado, cuidadoso e correto da dupla do Flua na escolha dos vinhos e das comidas. A capacidade de surpreender um bebedor capaz de lembrar dos mais de dois mil rótulos bebidos nos últimos 11 anos. O fato de que elas não importam o vinho, mas se rendem ao preço dos importadores no Brasil e garimpam raridades geniais. Por fim: o prazer de estar num lugar incomum, onde existe gente que entende de vinho e está ali para servir bem ou beber muito bem, numa noite muito agradável. Converta isso. Impossível. Prazer, se cabe no bolso, mesmo que com um pouco de sacrifício, não tem preço.

Loco