Sábado passado vivi mais uma daquelas experiências geniais em torno do vinho. Em homenagem a um amigo querido que atravessou desafios delicados em torno de sua saúde, resolvemos brindar juntos, em turma de nove pessoas, à vida numa tarde repleta de boas risadas e excepcionais rótulos. O combinado era muito simples: cada participante deveria levar um vinho muito bom, e se quisesse algo adicional para brindes ninguém ficaria chateado…

Como rótulos mais comuns brindamos com uma Casa Perini Brut, cuja presença da Riesling adoça demais a bebida, finalizamos a noite com a pureza da Malbec argentina que sempre me causa resistência, e comemos uma deliciosa torta de abacaxi com coco acompanhada pelo coringa universal Aurora Colheita Tardia – a relação custo x benefício mais inacreditável do universo dos vinhos nacionais. Antes de todos eles, no entanto, provoquei os presentes com o premiado RH Extra Brut, comprado na mão do produtor em Pato Branco-PR. Joia rara no país, esse rótulo levou 92 pontos em provas recentes e não costuma decepcionar. O respeito foi quase unânime. Alguns sentiram falta de acidez, o que é normal para quem está acostumado com espumantes brut, mas aqui talvez esteja o grande diferencial desse vinho: ele é elegante, carrega aquele amanteigado, o biscoito comum nas borbulhas de grande qualidade sem deixar de ser equilibrado. Considero demais esse vinho. Um show.

RH extra brut

Fonte: Revista Adega

Mas vamos ao que apareceu de efetivamente diferenciado em nosso encontro. Comecemos por uma espécie de clássico ibérico em torno da minha querida Alvarinho, a uva dos vinhos brancos que mais me agradam. Nosso anfitrião tinha consigo um Flore de Carme, vinho raro de Rías Baixas, sub-região de Salnés, onde se produzem os exemplares mais sublimes dessa bebida em solo espanhol. O rótulo só é lançado em anos especiais por um produtor pequeno, que retira as uvas de vinhas com média de idade de 25 anos e as engarrafa em um volume maravilhoso que lembra uma ânfora. Exposto à brisa do mar, o vinho é uma explosão de mineralidade, com envelhecimento sobre suas borras em processo relatado como “duplo” – doble lías. O líquido que aparece no copo é amarelado, encorpado. É muito sabor e uma intensidade que pede comida, sobretudo vinda do oceano. O polvo e o marisco que estão entre os aperitivos casam perfeitamente com a iguaria. O vinho é soberbo, mas não é absoluto. Isso porque, poucos quilômetros ao sul de onde é produzido, existe a sub-região de Monção e Melgaço dos vinhos verdes lusitanos. As duas pequenas cidades portuguesas disputam a fama de capital do Alvarinho, cada qual ao seu estilo, lembrando que já estivemos por lá duas vezes. A Soalheiro, na companhia do Palácio da Brejoeira e de Anselmo Mendes são os ícones absolutos desse cantinho do planeta. Levei para o encontro um Granit, rótulo que provamos na Soalheiro em 2017 e nos encantou. De uma leveza, de uma elegância, uma suavidade impactante. Impressiona como poucos quilômetros de distância podem produzir bebidas tão absolutas e distintas. A sensação é que optar pelo espanhol nos remete a um passeio de carro esporte, enquanto o português nos lembra uma viagem em sedan de luxo. O que você prefere? Exagerada e metaforicamente: um Porsche 911 ou uma Mercedes Maybach? Não importa, mas é indiscutível se tratar de experiências geniais. Duas oportunidades que não consigo avaliar o que é melhor. Na hora, diante da intensidade, eu votei na Espanha. Mas no dia seguinte a fineza portuguesa não me sai da cabeça.

Alvarinhos

Os dois brancos serviram para valorizar o que viria de mais incrível na noite. Um Bordeaux, de Saint Emilion, categoria dos Grand Vin. Já é o suficiente, e nossa garrafa é de 2003, ou seja, estava perto de completar 20 anos de idade de colheita e foi trazida por um casal que o comprou na região. A edição sequer tinha contrarrótulo, algo típico de bebidas que circulam localmente. Depois de passear pelo decanter, o vinho se mostrou vivo e potente, onde já se destacam, pela idade da bebida, seus aromas terciários, destacou um de nossos companheiros de noite. Brilhante. O vinho estava incrível.

Fechamos o jogo de bebidas fora de série com uma dupla chilena de tintos. Particularmente não se trata de algo que me encanta, mas precisamos sempre estabelecer a diferença entre o que é bom e o que gostamos. Bebemos, sem dúvida alguma, dois vinhos muito bem feitos, mas entre o novo e o velho mundo ficarei normalmente com a tradição da Europa. O Château de Feu Conmemoración 2015 é feito a partir da Shiraz e os produtores estão associados em diversos sites à Família Ravanal, que fabrica em escala grande. Aqui os 18 meses de carvalho novo se sobressaem, e sempre fico com a impressão de que estou imerso num imenso tonel de aromas de madeira, o que talvez já tenha me encantado mais, deixando a desejar para o meu paladar pessoal. Mas afirmo: belo vinho. E ele foi seguido por uma edição especial do Marques de Casa Concha, da Concha y Toro, denominada Heritage. Trata-se de um corte icônico do mundo francês à base de Cabernet Sauvignon, que predomina, acompanhada por Cabernet Franc e Petit Verdot em escalas bem reduzidas. A safra bebida era 2020, ficando a sensação de que a caixa em grande estilo, os papeis que embrulhavam a garrafa e uma carta explicando o vinho sugeriam guarda longeva. Não fizemos isso, e não me arrependo de ter participado desse instante. O vinho, com quase 15% de álcool, estava bem elegante, sem a intensidade criticada das madeiras da garrafa anterior, talvez porque seus 16 meses de estágio por carvalho ocorram menos em tonéis novos – apenas 20%. Mais uma vez: não sei se eu teria feito essa escolha, mas indiscutivelmente bebemos algo muito bom.

O mundo do vinho é assim, sobretudo quando combinamos de beber com amigos: os outros compram e levam algo que você provavelmente não escolheria (sendo a recíproca verdadeira), e isso adensa nossa cultura e sofistica nosso paladar. O encontro terminou, para mim, com mais um aprendizado sobre vinhos chilenos, algo que me falta e devo agradecer aos companheiros de uma noite estupenda onde, principalmente, brindamos à vida. Saúde.

vinhos da noite