A conversa começa de um jeito um pouco triste. O proprietário de vinhos argentino, que passara parte da vida entre a Alemanha e o Brasil, morrera atropelado fazia poucos dias enquanto corria. No dia seguinte de seu aniversário de 60 anos, o bem-sucedido executivo de fundos financeiros, que comprara uma parcela de terra muito especial em Mendoza e estava vinificando em alto nível, faleceu de forma banal nas ruas de São Paulo.

A Spielmann Estates & Wines pertencia a Rodolfo Spielmann, e nos primeiros anos seu vinho foi supervisionado por Jose “Pepe” Galante, uma lenda que dirigiu a produção da Catena. A despeito das tragédias da vida, e de um brinde a este respeitado produtor, demos início a uma noite muito especial no Le Bon Vin faz pouco mais de uma semana. Destaque: na semana passada escrevi sobre a Le Bon Vin e insisto: vale a pena conhecer.

O convite me pegou de surpresa. Uma amiga querida disse que o dono da wine-bar-store fazia questão de nos receber para uma experiência. Quando cheguei, sozinho, percebi que teríamos um jantar entre amigos onde degustaríamos alguns vinhos. Receita perfeita para me fazer sorrir, bastando que a Ka chegasse para iniciarmos a aventura.

A sala do evento é incomum e surpreendente. A loja é muito especial, pequenina e confesso que não nos vi num momento intimista naquele espaço. Mas não são poucos os endereços pelo mundo que escondem suas surpresas. Bastava uma porta corta-fogo, uma escada estreita de metal e descemos para o porão da loja, literalmente para o estoque, onde estavam algumas prateleiras com vinhos cercando uma mesa ampla e bem decorada. Excelente. Vamos em frente.

IMG_20230405_222846

Nosso anfitrião é extremamente cuidadoso e adora os detalhes. Em volta da mesa ele acomoda, contando ele, oito pessoas. Pessoas muito interessantes, predominantemente do universo da arquitetura e engenharia. Uma daquelas noites em que as frases merecem ser ouvidas com atenção, em que todos podem e devem falar algo, sobretudo sobre os vinhos, arriscando, perguntando e se interessando. Nos sentimos extremamente à vontade, e fomos muito bem conduzidos nas percepções, descrições e degustações. Um show.

IMG_20230405_201010

Para iniciar a noite um prato com queijos e embutidos, além de uvas e nozes. Quando começa assim, tenha a certeza de que chegaremos a algo para ser vivido com atenção. A ideia foi promover uma degustação vertical de um dos vinhos da Spielmann, o Canal Flores, produzido a partir de vinhas centenárias de Malbec e algumas castas adicionais, plantadas na especialíssima localidade de Perdriel. As safras são as 2013, 2014 e 2015, classificadas na tabela da Mistral, para Mendoza, com as notas 9, 8 e 7, respectivamente.

Esta última informação eu não tinha, o que abranda as defesas e a vontade de acertar. A degustação começa pela ordem crescente, ou seja, do 2013 ao 2015. Nos contrarrótulos temos a descrição do blend: 2013 carrega 90% de Malbec, enquanto 2014 tem 85%. Falta a informação na safra 2015, mas algo nos vem à cabeça: o vinho, muito bom, passa por nove meses de carvalho francês e se o objetivo mais esperado é que a Malbec predomine, em tese parece que quanto mais ela estiver presente, maiores as chances de isso ser um indicativo de uma safra melhor. Assim, a nota 9 de 2013 com 90% de Malbec e a nota 8 a 85% em 2014 poderiam fazer algum sentido. Meus argumentos se fortalecem quando encontro descrições da safra 2015 na internet a 67% de Malbec, nota 7, e uma novidade: enquanto todas as safras carregam um pouco de Shiraz e Cabernet Sauvignon, a mais nova vem com Petit Verdot. É com tais informações que defendo meus argumentos: quanto melhor a safra, mais Malbec, quanto pior a safra mais a vinícola se esforça para fazer um blend que agrade e atinja aos objetivos de se produzir algo muito bom. Isso mesmo: o Canal Flores é bem legal, e os mais de R$ 200 cobrados por garrafa fazem sentido. Mas e a degustação?

IMG_20230405_202028 IMG_20230405_204703 IMG_20230405_211800

A safra 2013 é potente, e no nariz remete a grandes feitos de Ribera del Duero. Os olfatos mais potentes da mesa vão além da madeira e descrevem temperos e frutas vermelhas. Não sei se tenho capacidade para isso. Na boca o vinho volta para a Argentina, e agrada bastante. Belo rótulo. O 2014 me agrada menos, estando ele menos potente, com 14,2% de álcool contra 15% da safra 2013. O 2015 tem anunciado na garrafa 14%, e talvez pelo blend carregando a Petit Verdot me agrade bastante. Lembrei de um texto que escrevi recentemente onde destaco que a Malbec sozinha tem me capturado menos que os blends geniais feitos na Argentina sob o predomínio deste ícone local trazido da França. Pois bem, o resultado da degustação é este: o 2015 me agradou mais, talvez pelo blend, enquanto no 2013 eu senti que o vinho, muito bom, estava mais próximo do ideal da proposta ali descrita. O 2014 eu colocaria um degrau abaixo dos demais.

A degustação segue e ainda jantamos, com bruschettas, prato de massa e sobremesa. Uma noite extremamente generosa. Antes do doce, consigo colocar um pouco de cada vinho em minhas três taças. As etiquetas sugeriam duas horas de decantação, e entendo que talvez no final do jantar tenhamos atingido tal solicitação. O 2014 não estava mais ali, tendo de fato confirmado minhas percepções de que não me agradou tanto – a despeito de ser um belo vinho. O 2015 se salvava fortemente porque gostei muito do blend. Mas nesse instante final foi o 2013 quem mais se destacou. A potência extrema do início estava mais domada, e o vinho estava presente e amável. Acho que se fosse para levar comigo uma garrafa, seria a 2013.

IMG_20230405_214556