Pense num vinho cujas uvas vieram da praia, colhidas em meio à areia. Agora transfira sua ideia para uma região onde o metro quadrado do chão é extremamente valioso. Notarás que as uvas nascem sob o olhar desejoso de quem sonha em desalojá-las para construir uma casa, um condomínio ou algo para servir os agraciados que ali pretendem viver, ou já vivem.

Esse lugar existe e fica em Portugal. Estivemos lá no dia 01 de janeiro de 2015, num congestionamento monstro pelas estradas estreitas para tirar fotos na frente de raras vinícolas e procurar vagas para estacionar o carro e conhecer os faróis da belíssima costa dos arredores lisboetas. Um passeio cansativo, um por do sol esplêndido e a vontade de fazer de novo, pois foi deslumbrante. Estávamos numa terra conhecida por nome incomum ao turismo e considerada rara no mundo dos vinhos: estávamos em Colares.

Pedro Garcia, escrevendo para o portal português Fugas, descreveu assim a região: “resistir à fúria dos ventos marítimos e ao poder corrosivo das partículas de sal e extrair vinho da areia é uma heroica teimosia que perdura desde a chegada dos árabes a Sintra”. A produtividade é baixíssima e o vinho se torna bastante caro para os padrões locais. Para os amantes da bebida em seu sentido mais atual, certamente poderá ficar a impressão de que se está tomando algo estragado ou passado. Que nada! “As videiras crescem horizontalmente, coladas ao chão, num rendilhado de madeira, e são protegidas da influência marítima através de paliçadas de cana seca e muros de pedra solta. É muito trabalho para tão pouco vinho”. E é isso que o faz caro, especial, salgado, iodado, diferente de tudo o que vimos até hoje num espaço que até cresceu nos últimos anos, mas ainda é tímido e desafiador, compreendido entre “a praia da Adraga, parte de Almoçageme e Colares, Mucifal, Banzão, Rodizio, Azenhas do Mar, Fontanelas, Magoito, Casal de Pianos e praia da Samarra”. E se quer saber onde tudo isso fica, basta dizer Sintra e arredores, e compreenderás que “toda esta área foi um dia tomada pelo mar e com o recuo das águas marítimas sobraram terrenos cobertos de areia”.

A casta predominante é a raríssima Ramisco, trazida faz séculos da França. Faz um vinho tinto de guarda, pálido no seu vermelho, açoitado pelo tempo de guarda. Tomamos na virada de 2014 para 2015 uma joia levada por um casal de amigos para a casa de primos pertinho de onde a garrafa nasceu, nos arredores de Lisboa. O primeiro gole foi estranho, quase um mistério. Depois, harmonizado de forma correta, e devidamente explicado, se tornou algo genial. A safra 1993 marcava teor alcoólico baixo (11,5%) e o vinho se entendeu bem com alguns queijos e um doce delicado feito a base de clementina – entenda como a tangerina local e tudo ficará mais fácil. O rótulo estava praticamente solto e o Manoel José Colares só não foi mais elogiado que o Porto Vintage 1970 sobre o qual já escrevi aqui. Divinos!

colares tinto

Fonte: Garrafeira do Estado

Poucos meses depois, em novembro de 2016, fui a Londres a convite de amigos para uma palestra na London School of Economics (LSE). Por um compromisso de trabalho tive que voar no sábado, e não um dia antes com um grupo de brasileiros que estava indo para um curso de Parcerias Público-Privadas que eu também participaria. Quem voou na sexta fez escala em Lisboa, “abriu a passagem”, e foi à tradicional Viuva Gomes, casa de vinho de Colares. Aborrecido com a ausência, pedi que me trouxessem uma garrafa e fui surpreendido, já em solo inglês, com uma garrafa de 500 ml de um vinho branco de rótulo magnífico. Dia desses, em jantar com casal de amigos em casa, abrimos a bebida à base de Malvasia de Colares. Primoroso, delicado, extremamente mineral e absolutamente harmonizado com o que obviamente associaria Portugal e um vinho praiano: os frutos do mar. Perfeito.

Colares branco

Fonte: Cinéfilos Enófilos