Quinta-feira passada jantei com dois amigos, e um deles me disse que eu era um professor que trabalhava com brilho nos olhos quando estava em sala de aula. Conversávamos sobre felicidade profissional e lamentávamos ser raro ver encantamento na face das pessoas enquanto elas estão trabalhando. Lembrei de outro amigo, que uma vez me disse que trabalho não é diversão, mas sim, trabalho. A diversão estava no hobby, no final de semana ou nas férias. Achei aquilo duro demais. Eu gosto de trabalhar sério e me divertir, mas que fique registrado que paguei caro demais os anos em que me diverti trabalhando. São coisas diferentes. O trabalho pode ser leve, mas o descanso não pode ser no trabalho. Estabelecer limites para estes espaços é o que tem rendido anos da terapia que faço.

Escrever sobre vinhos, pesquisar, olhar com atenção, conhecer e provar é parte desse esforço de sair do trabalho para me divertir. É algo que faço para escapar do cotidiano da Ciência Política e tem me rendido alegria. Quando meu amigo me disse, na quinta, algo sobre brilho nos olhos, imediatamente me remeti para 24 horas antes. Na quarta-feira eu e a Ka jantamos novamente, em grande estilo, na Le Bon Vin a convite de seu proprietário. O evento estava associado à Vinícola Manus, em Encruzilhada do Sul, local extremamente promissor para a produção de vinhos gaúchos. A estrutura turística ainda não está desenvolvida, mas trata-se de um dos raros lugares do mundo onde o grupo Moët & Chandon tem terras próprias e produz Chardonnay e Pinot Noir descritos como quase perfeitos para os fins de um grande espumante – algo que a casa tem gabarito para determinar.

Quem nos brinda com uma conversa maravilhosa é um dos donos da Manus. Trata-se de um profissional que, em poucos minutos de conversa, ilustra de forma absolutamente perfeita o conceito de brilho nos olhos associado ao trabalho. Com um detalhe: de maneira leve e repleto de conhecimento. Nunca, em mais de 100 visitas a vinícolas pelo mundo, vimos alguém falar com tamanha propriedade sobre leveduras, e principalmente sobre uma divisão acurada e detalhada do próprio solo, tentando fazer com que uma parcela considerável de terra sirva, separada em pequenas parcelas, às melhores castas. A pesquisa com a Embrapa é detalhada e nos encanta.

A Manus tem produzido uvas raríssimas para o Brasil, a ponto de trazer espécies da Romênia, da Grécia e da Georgia. Seus vinhos não são óbvios e as tradicionais e respeitadas Merlot e Cabernet Sauvignon ficam muito distantes do entusiasmo de nosso vinicultor. A despeito da variedade de castas, o que parece funcionar melhor por ali são uvas italianas, e quando entra nessa seara os olhos se mantém brilhantes e o sorriso se abre mais largo. Todo apreciador de vinhos, a despeito do envolvimento que tem com a bebida, tem sua uva de estimação. Agora imagine que você tenha a oportunidade de produzir e trabalhar com aquilo que ama, e fazer seu próprio vinho com a casta que te encanta. É o que vimos no produtor quando falou da Nebbiolo. Primeiro brotou o orgulho de quem no norte da Itália ouviu de viticultores que aquele vinho poderia ser rotulado ali mesmo, pois não devia nada a qualquer um daqueles que produzem, simplesmente, vinhos como os comemorados Barolo. Imagine o que é passar por isso. Bah! Exclamariam os gaúchos.

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Foi esse o clima de nosso jantar de quarta-feira. Muito orgulho sobre a mesa, um sentimento absolutamente nobre de alguém que efetivamente tem motivos para tanto: dos rótulos, passando pela logo e chegando ao que está no interior de cada garrafa que provamos. Estávamos em sete pessoas e conhecemos quatro vinhos da linha Manus. Começamos a noite com um espumante Nature, blanc de blanc, impressionante, absolutamente seco, com um caráter cítrico digno das melhores parcelas de Chardonnay que conhecemos pelo mundo e da confiança de um grupo histórico que veio de Champagne até aqui para atestar tamanho potencial – importante frisar que a Manus vende parte expressiva de suas uvas para microprodutores, mas também tem em sua história o fornecimento para a Chandon.

Na sequência, aquele que sempre desperta minha curiosidade: um Pinot Noir, que o sotaque italiano de nosso produtor não resiste a chamar de Pinot Nero. O vinho estava muito bom, sem exageros atrelados às frutas vermelhas, com características que me lembraram algo que já bebi do Oregon, de onde vêm os vinhos que mais gostamos desta casta. Uma bebida com personalidade que tem numa enóloga brasileira que trabalha para a Manus a guardiã do tempo de colheita e outras tantas ações essenciais para se chegar a um belo resultado.

A terceira garrafa fez o tempo parar. Depois de conversarmos sobre premiados rosês da casa que merecem muita atenção a partir da uva Barbera, aterrissou na mesa o orgulho maior do nosso produtor. O Nebbiolo entrou na taça sob uma coloração tendendo ao âmbar. Respirou, girou e veio ao nariz e à boca. A magia estava ali presente, trazendo à casta do que os italianos chamam de “o rei dos vinhos, e o vinho dos reis”, ao se referirem aos Barolo, toda sua expressão. O vinho estava incrível, e vale todo o esforço, a dedicação e o preço cobrado pela garrafa – que não é barata. Mas a experiência compensa, deixando no ar algumas curiosidades, como a percepção da Ka sobre a harmonização perfeita, obtida segundo seu paladar por uma pera muito madura selada no azeite e finalizada com pimenta branca e mais azeite – a conferir, inclusive porque a Manus produz um azeite muito bacana que harmonizou perfeitamente com o vinho.

Fechamos a noite com um Teroldego, que diretamente do Rio Grande do Sul tem me encantando, assim como a Ancellotta. O vinho estava muito bom, mais potente que o anterior, de um vermelho fechado intenso sem ser exagerado e capaz de encantar grande parte da mesa. Gostei do que bebi, mas não consegui tirar da cabeça o vinho anterior. É como provar algo muito bom depois de se ter contato com alguma coisa maravilhosa, ou seja, é injusto avaliar, apesar da certeza de que estava genial. Fiquei com o compromisso pessoal de comprar uma garrafa dele e beber isoladamente, com a certeza de que serei mais correto com tal rótulo.

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